O EP é o segundo disco solo do compositor goianense, um dos artistas mais ativos e celebrados de Goiana e Mata Norte de Pernambuco
Por Guilherme Souza
Finalmente 2020 está chegando ao fim. Geralmente um ano difícil se arrasta, mas este ano, apesar de todos os pesares, passou voando. Ele criou um limbo em nossas vidas, nos deixando atordoados, gerando muitas sensações conflitantes e quebrando diversas expectativas. Agora, na reta final, podemos respirar um pouco mais aliviados e a nuvem densa de incertezas parece começar a se dissipar, mostrando uma luz no horizonte, embora ainda existam seres que preferem continuar na escuridão da ignorância em benefício próprio.
E em meio a todas as mazelas que a pandemia do Coronavírus causou e continua causando, um artista ainda consegue tirar inspiração do improvável, como por exemplo, até de um grilo que cisma em atrapalhar seu processo de gravação solitário. É nesse clima de perceber a solidão que o compositor goianense Valfrido Santiago criou o seu EP “Silêncio”, lançado hoje e já disponível nas plataformas de streaming. Este é o segundo trabalho solo de Valfrido, que faz parte de outros projetos: Valfrido Santiago e Arreboque e Tertúlia, ambos de Goiana e com direcionamentos artísticos diferentes. Valfrido começou sua carreira musical ainda nos anos 80 e hoje consegue se comunicar fluentemente com a nova geração de compositores e músicos do cenário alternativo de Goiana e Zona da Mata, influenciando ao mesmo tempo em que é influenciado. Ele reflete: “Sou de uma geração onde a rede social era sentar na ‘rodinha’ da Rua Direita e conversar até tarde da noite. O contato e a proximidade das pessoas é insubstituível e assim também funciona minhas relações com os shows. Tenho a sorte de compartilhar músicas e vida com pessoas mais jovens, para mim é um privilégio. Aprendo muito com eles.”
Apesar de Valfrido priorizar e gostar mais da criação coletiva, o momento atual forçou uma manifestação de criatividade solitária, embora tenha lhe proporcionado a experiência de ter todo o controle sobre a produção do seu EP. Inicialmente, sua intenção era gravar um registro apenas com voz e violão – seu instrumento primário – mas à medida que as ideias iam tomando forma, ele percebeu a necessidade de agregar outros instrumentos, reconsiderando o formato e dando mais textura as músicas. Dessa forma, Valfrido tocou todos os instrumentos: guitarra, violão, viola de 10 cordas, bandolim, baixo, teclado, pandeiro e bateria. “Eu já tinha uma certa intimidade com alguns dos instrumentos que entraram nos arranjos. As músicas foram gravadas em casa. Fui o técnico de gravação, produtor, arranjador, músico, etc. Aprendi várias coisas e outras, não teve jeito”, ele afirma com humor.
É sabido que muitos compositores e artistas dão o seu melhor fruto quando passam por situações difíceis: um fim de um relacionamento, a perda de um ente querido, uma grande revolta contra um sistema opressor e claro, a pandemia do Coronavírus e a quarentena, que por mais angustiantes que possam ser, também podem servir como uma inspiração artística, para depois se transformar numa válvula de escape. Porém, para Valfrido, mesmo com toda a angústia que estamos enfrentando atualmente, ele confessa que o seu modo e processo de composição não sofreram grandes mudanças, apenas seguiu um rumo solitário ao invés de coletivo. “Eu evitei falar da quarentena diretamente, não fiz nada usando esse momento como tema. Sempre tentei fazer músicas como ‘ofício’, não depender do estado emocional. Vou trazer um exemplo bem clichê. Fazer músicas românticas só quando está apaixonado. Não dá para estar nesse estado muitas vezes na vida, mas dá para falar sobre esse sentimento que já foi vivido”, ele confessa.
“Silêncio” é um EP que conta com 5 músicas, e a música título foi inspirada em um um livro do poeta goianense Vidal de Sousa: “Existe um mundo em cada silêncio”. “Conheço Vidal e a poesia dele já há muito tempo e já vinha ensaiando essa parceria que aconteceu agora. Como aconteceu também com Ademauro (outro poeta goianense), venho construindo parcerias com poetas e músicos da Zona da Mata. É uma ligação que acho fundamental”, ele conta. A capa do disco, inclusive, é de autoria de Philippe Wollney, também poeta goianense. Essa correlação com a obra de Vidal serviu de fio condutor entre as canções, que juntas, formam uma unidade de pensamento e trazem a perspectiva do estar só, isolado, onde o indivíduo começa a ter mais noção sobre si e a repensar diversos processos, e como o próprio Valfrido bem disse em uma publicação numa rede social: “Estar só, no mínimo, deve ser estar em boa companhia!”.
Com quase quarenta anos de carreira musical, contando com umas pausas que a vida impõe, Valfrido, que se considera propriamente um compositor mais do que músico, já tem suas músicas na boca do povo e tem um público cativo nas suas apresentações. Suas composições exalam uma urbanidade tipicamente interiorana, conta situações do cotidiano e coloca Goiana em evidência no panorama musical independente para além da cidade, sempre mantendo um forte entrelaçamento com letras poéticas, que causam um sentimento de afetividade e pertencimento ao ouvinte, embora seja importante aqui levantar o questionamento sobre o conceito de “música regional”; por que a música popular feita em Pernambuco é considerada regional quando carrega suas vivências, mesmo que possa dialogar com estilos variados e até internacionais, e a música popular feita em São Paulo é apenas… música? Fica aí o questionamento.
Valfrido é um exemplo de resistência inspiradora para a nova geração de músicos autorais, principalmente de Goiana. Mesmo depois de tanto tempo de carreira musical, adquirindo e trocando experiências, sabedoria e frustrações inerentes do cenário independente, ele continua ativo e atento sobre novas formas de composição e produção, dando continuidade ao seu legado. Quando perguntado sobre o que ainda o anima em continuar criando música em Goiana, ele revela: “Um tempo atrás, um amigo que deve estar perto dos 30, me contou que escutava na adolescência, nas madrugadas de Goiana ‘Nota de falecimento’, música que eu divido a parceria com o grande amigo José Torres, falando da importância dessa música para aquele momento da vida dele. Essa história já justifica as músicas que fiz e que ainda pretendo fazer”.
Cabe no final duas curiosidades: o lançamento do EP “Silêncio” acontece um dia antes do seu aniversário e marca 25 anos do seu casamento. Não deixa de ser um presente para si mesmo, mas é também para nós, pois agora temos mais músicas autorais de qualidade no nosso cenário para cantarolar, e de quebra, refletir sobre a importância de apreciar e entender o silêncio quando se faz necessário através da música conterrânea.
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