A artista goianense lança “Iso.Lados”, seu primeiro EP de canções autorais e um Álbum Visual, onde mostra como encara os desafios pessoais atiçados pela pandemia
Por Guilherme Souza
Mesmo com todas as problemáticas impostas pela pandemia do Coronavírus, Goiana vem se mostrando bastante produtiva na esfera cultural alternativa. A produção e o experimentalismo musical andam em alta na cidade e a mais recente prova disso, é o lançamento do EP “Iso.Lados” acompanhado de um Álbum Visual, da compositora e musicista Sam Silva. Ela é uma das artistas goianenses contemporâneas que mais passou por diversos projetos ao longo da sua curta carreira e vem mostrando cada vez mais uma maturidade musical antenada às tendências.
Tendo iniciado sua carreira musical em 2012 de forma autodidata, ela logo se destacou na região da Mata Norte por ser a única mulher baterista atuante na época, tocando em bandas de Rock de Goiana como a The Blue Tomato e a Vênus em Fúria. Em 2015, ela já tomava o rumo profissional, passando a integrar o posto de baterista nas bandas de Lucas Torres e na Prisma Orbe. Hoje, além dessas bandas, ela também faz parte do Projeto Tertúlia, coletivo de música e poesia autoral da Mata Norte e integra a Mostra Reverbo. Sam Silva acabou por encontrar no violão o instrumento onde pôde dar mais sentido as suas composições – já tendo inclusive realizado dezenas de apresentações por Pernambuco – seja como artista solo ou com parcerias. Além de instrumentista profissional, Sam Silva é produtora e diretora musical, tendo assumido a direção do EP “Corpóreo” de Lucas Torres, a produção no single “Vídeo Chamada” de Renata Torres e está envolvida nas produções da CallCommunication, coletivo de Rap goianense. A mulher faz tudo e mais um pouco.
O EP “Iso.Lados” vem de uma laboração que antecede a pandemia, datando de julho de 2019. As músicas que o compõem já estavam engavetadas, mas com o apoio da Lei Aldir Blanc em Pernambuco, Sam decidiu tirar a poeira delas, fazer algumas alterações para mostra-las ao mundo. O distanciamento social e a quarentena, embora cientificamente eficazes contra a proliferação do Coronavírus, fez com que mudássemos nossas rotinas e alterasse nossos processos criativos. Coube a cada pessoa achar uma melhor forma de lidar com os estresses do isolamento imposto, porém necessário. Se a pessoa em questão é artista, a situação atual é inspiradora de qualquer jeito, para o bem ou para o mal, dependendo do foco e da energia que ela pretende explorar. É inegável que estamos vivendo em tempos de ansiedade constante, tristeza e frustrações, mas como diz aquele ditado, “há males que vem para o bem”. Obviamente, alguns males são irremediáveis, mas a música, a arte em si, pode ajudar a amenizar momentos angustiantes e nos fazer enxergar a vida sob uma perspectiva mais animadora e pôr os nossos pensamentos no lugar. Para Sam, a pandemia não chegou a afetar seu processo artístico diretamente, mas facilitou para que ela pudesse se concentrar em aprender coisas novas sobre o seu ofício na música.
Ela explica como lida com essa situação:
“Eu acabei ganhando tempo e conseguindo estudar coisas que eu ainda não tinha parado para entender, que no caso foi a produção musical, de como se dirige um trabalho e como fazê-lo da melhor forma possível, com as condições que você tem. A pandemia não afetou tanto no meu processo artístico, mas como ser humano mesmo, na minha forma de enxergar o mundo e na soma das minhas vivências, que claro, afetam no processo artístico. Consequentemente, saíram frutos e prejuízos no processo artístico. Mais frutos do que prejuízos, tudo foi um desaprendizado mental pra ser uma aprendizado artístico, no final das contas.
“Iso.Lados” surge então como resultado dessa aprendizagem, quando a partir do autoconhecimento é possível transformar as simplicidades da humanidade em arte. Uma obra artística não precisa ser sempre dotada de um conceito intelectual apurado para ser considerada relevante. Em um mundo onde as redes sociais podem funcionar como tribunais do entretenimento, forçando produtividade, ditando regras acerca do que é “cult” ou não, e a indústria cultural fabrica músicas descartáveis, é um alento poder ouvir algo real e emocional, com a qual você se identifica. E atualmente são os conflitos emocionais intensificados pela pandemia que têm mostrado que apesar do isolamento, não estamos sós. Ao menos compartilhamos os mesmos problemas psicológicos.
Sam discorre sobre esse desenvolvimento que resultou no EP:
“Olhando pra trás, hoje, eu percebo como um encerramento de ciclo. Um caderno fechando e sendo finalmente guardado no armário pra só ser reencontrado com esse mesmo carinho e olhar de aprendizado daqui a um bom tempo. Porque quando eu comecei essas produções, elas eram apenas música… harmonia, melodia e ritmo. O tempo foi impulsionando o que aqueles sons tiravam de mim em forma de palavras, até chegar como canção. Ia fazendo com calma, sem pretensão ou expectativa nenhuma, apenas usando isso como uma forma de exploração de até onde eu conseguia chegar com as condições que eu tinha no momento, e aí eu lembro que parei por uns três meses de produzir essas músicas e me dediquei mais a buscar alguns conteúdos, porque eu sempre me questionava por não ter nenhuma passagem em algum curso ou orientação sobre produção musical. Quando a pandemia chegou, várias pessoas que trabalham com essa área começaram a fazer Lives e conteúdos gratuitos, apareceram umas oficinas também e eu fui mergulhando cada vez mais, usando essas músicas como meu próprio laboratório, surgindo um dos processos mais loucos que já tive, talvez por ter sido o primeiro a me sentir totalmente só durante 80% do processo, já que todas as decisões finais eram minhas: coisa que não tô acostumada por sempre estar em banda, grupo ou com algum artista, jamais solo. A gravação e produção foram divididas em etapas: A produção foi toda feita em casa, alguns instrumentos foram enviados pelos próprios artistas que participam, músicos que contribuíram com o processo e a voz captei em estúdio. Mixagem feita remotamente com Matheus Pinto, que inclusive somou muito no processo e masterizado com Vinicius Aquino no Estúdio Carranca.
A tecnologia vem se mostrando praticamente indispensável neste período pandêmico, facilitando o consumo de forma online e criando possibilidades de aprendizado à distância. No meio musical, aplicativos e ferramentas digitais permitem cada vez mais o desenvolvimento dos artistas, técnicos e produtores audiovisuais, arquitetando pontes entre o modo orgânico e tecnológico de composição. O computador já é considerado um importante instrumento de trabalho na área, gerando até a discussão sobre ser ou não de fato, um instrumento musical. Recentemente, o músico, produtor musical e artista norte-americano Mike Shinoda (mais conhecido pela sua banda Linkin Park) afirmou numa entrevista que sim, o computador pode ser considerado um instrumento musical, pois segundo ele, não há diferença teórica entre “pressionar notas em um teclado ou tocar uma bateria digital, ou qualquer coisa que faça barulho pelo seu computador.” Ele ainda destacou que desde o começo do Linkin Park, sempre tratou programas de edição de áudio como o Pro Tools e o Ableton como se fossem instrumentos “onde você pode editar e realmente fazer novos sons a partir desse áudio”.
No entanto, Sam Silva, que pela primeira vez usou o software Ableton Live para fazer as músicas que compõe o EP, não compartilha do mesmo pensamento a respeito do computador ser considerado um instrumento musical:
“Isso ainda é bastante discutido entre o mundo acadêmico da música e também entre os próprios artistas, produtores e outros trabalhadores do áudio. Na minha opinião, não. Porque o instrumento musical é um objeto, enquanto que o computador, no geral, é apenas uma ferramenta assim como qualquer programa ou aplicativo incorporado a ele. O Ableton é uma ferramenta em que, mesmo que saia dele o resultado final do processo, a ideia não vem dele e sim da nossa cabeça. Nós que ‘ouvimos o som’ na nossa cabeça e aí vamos procurar a ferramenta ideal pra aquilo, o que eu acho ótimo, já que ele abre a possibilidade de criar novos sons a partir das nossas ideias, expandindo muito mais os limites da criatividade, mas eles não vão escrever a música sozinhos. Ele apenas recebe nosso comando e faz (quando não inventa de travar), enquanto que com o violão, por exemplo, nos limita e as vezes essa limitação é ótima para dar um pontapé inicial no processo. Enfim, ferramenta e objeto com o mesmo propósito: produzir música.”
Sobre as diferenças dos processos de composição, orgânico ou digital, ela revela:
“Acho que a diferença é só no processo, mas sim, eles se complementam. Nunca tenho um processo igual ao outro. Tenho hábitos e meus próprios métodos e técnicas para compor canções, que às vezes vem do mesmo ponto de partida ou provocação, mas acaba se transformando durante o caminho, tornando, pra mim, cada música um registro diferente do outro. Não importa se pego o violão pra compor e depois passo isso pro computador ou começo pelo computador e depois acrescento instrumentos acústicos.”
O streaming vem orientando as formas de lançamento dos artistas na indústria fonográfica, apresentando plataformas digitais que substituem os downloads, mas ao mesmo tempo comporta um formato bem antigo em seus serviços, que surgiu nos anos 60: o EP. Na sua origem, esse formato surgiu por uma questão de custo-benefício e serviu como alternativa de lançamento de artistas e bandas que não tinham condições para financiar um álbum completo, mas ao decorrer das décadas foi servindo a outros propósitos, chegando a ser material de colecionador e sempre se renovando e passando por períodos de obscuridade. Uma vez que o conceito de LP, ou seja, um álbum cheio, tem ficado de escanteio, o EP é o formato mais utilizado hoje em dia por artistas independentes, seja por ser mais barato e prático de gravar, podendo o artista fazer tudo sozinho, como também por ser uma maneira mais assertiva de se lançar material visando conquistar fãs, levando em consideração que os ouvintes modernos preferem formatos básicos, como o single e montar sua própria playlist de músicas aleatórias.
Dessa forma, “Iso.Lados” conversa muito bem com a atualidade. É um EP autoral recheado de participações especiais, parcerias musicais de grande estima para Sam Silva. Juliano Holanda faz as honras de abertura em “Madrugadas”. Gabi da Pele Preta dá o tom da poesia na instrumental “Liberdade” e Sam admite: “ela foi a cereja do bolo na música, aquilo que tava faltando”. Jonatas Onofre participa em “Espelhos” que é composição dele com a própria Sam. Ela inclusive teve a sensibilidade de incluir a saudade de seus amigos que não são da área musical em “Dias de Sol”, que contém áudios dos mesmos. Todas essas participações foram sampleadas* diretamente do Whatsapp. De fato, “Dias de Sol” é a música que mais se destaca pelo fator surpresa, onde podemos ouvir Sam exercendo fortemente a influência do Trap em sua música, aliada a uma estética Lo-Fi de clima psicodélico que permeia todo o álbum.
Ela esclarece como essa influência vem se desenvolvendo e a correlação com as suas vivências:
“Eu ando com a galera da CallCommunication. Inclusive, eu tô produzindo o EP de Constantino. Os meninos fazem parte desse rolê mais novo, desde 2019, e eu acabei tendo esse contato com o Trap, achando essa coisa do Auto-Tune muito interessante. Pra mim é uma ferramenta maravilhosa se você for criativo pra usar. Particularmente, eu não curto muito o Auto-Tune do jeito que ele é no Trap hoje, mas entendo que é uma característica importante do estilo. Eu prefiro olhar para o Auto-Tune de uma forma muito mais criativa do que como regra. Isso acabou influenciando na minha curiosidade de mexer no Auto-Tune de uma forma mais despojada. ‘Dias de Sol’ é sobre isso. A música surgiu de uma fotografia de uma amiga minha que me inspirou, Kamila Ataíde, lá de Recife e foi feita lá no começo de 2020. É sobre sentir falta de dar um rolê com os meninos, meus amigos mais nerds, porque eu sou do mundo da música, mas eu sou uma nerdona, só ando com quem é esquisito, gente doida e tá de boas. Então eu quis dedicar essa música aos meus amigos. Tanto que o videoclipe eu fiz questão de ser com eles, infelizmente não foi com todas as pessoas que eu gostaria por causa da pandemia e por isso nos certificamos de que tava todo mundo bem. Foi muito divertido. A música passa essa diversão, uma coisa despojada e inusitada. Eu acho que ‘Dias de Sol’ pode não ser a melhor música tecnicamente em questão de produção, mas pra mim é a melhor música do EP, porque ela expressa muito quem eu sou. Eu sou aquela Samira que tá sempre no grupo da galera, sempre tá no rolê com alguém, conversando, porque eu gosto disso, de tá rodeada de pessoas, amigos. Claro que não o tempo todo, mas eu não sei passar meus dias sem falar com alguém, nem que seja pra perguntar como foi o dia dela, é de mim isso.”
Continuando sobre as influências, ela entrega:
“Eu sempre gostei de ouvir o Lo-Fi e comecei a querer produzir por
causa dessa estética. Artistas do gênero, como Zeca Viana, do Recife, me inspiraram muito. Mac Demarco, Homeshake, Slowdive, Ana Frango Elétrico, MGMT e Tame Impala (primeiros discos) … lembro que era o que eu mais escutava nos fones em síncrono com o desenvolvimento do processo. Isso ficou muito claro quando escutei todo o EP e o engraçado foi: eu só consegui perceber todo esse caminho isso no dia que precisei fazer a parte burocrática. Já as inspirações… isso tá bem claro nas músicas. Foi o dia a dia, minha cidade, meus amigos e conhecidos, sentimentos, percepções, dúvidas e conclusões durante 1 ano e 7 meses até a finalização do EP.
Acompanhando o EP, Sam Silva lança também um Álbum Visual em seu canal no Youtube, que consiste em quatro videoclipes – um para cada música do EP – que captam suas interações em Goiana, sua cidade. Ela recomenda que se assista a obra audiovisual para se ter uma experiência mais sensorial. “Foi uma coisa que acabei fazendo de forma bem despretensiosa e acabou se tornando uma coisa maravilhosa. Não tem conceito, é mais um sentido. Não foi uma coisa muito bem pensada, simplesmente aconteceu. É um trabalho que eu acho que de todos que farei daqui pra frente na minha vida, este é o que mais define quem eu sou como pessoa, não como artista. Os vídeos ajudam a dar sentido. Teve muita coisa no processo que acabou tendo sentido no final e parei para olhar do ponto em que eu tava pra trás. Fazer música pra quem não me conhece é muito fácil, o negócio é fazer música pra quem já conhece a gente de muito tempo… é um trabalho que eu fiz pra mim, pros meus amigos, pra minha cidade, comemorando meu nascimento artístico, eu creio.”
Sam Silva, atenta à realidade, traz questionamentos pertinentes em seu EP “Iso.Lados”: Quem é você quando você está apenas consigo mesmo? Quem é você em essência? O que ainda estou fazendo aqui e pra onde devo ir? São as perguntas que nos fazem continuar seguindo em busca de respostas para as nossas indagações. Se algumas delas não forem respondidas nessa trajetória, mais vale a experiência adquirida do que a inércia causada por altas doses de apatia. Este trabalho nasceu antes da pandemia e se desenvolveu neste período, mas não se trata apenas do impacto desse momento histórico. É um retrato de que é necessário encararmos nossos medos e se não conseguimos afugenta-los, que ao menos possamos aprender a conviver com eles de forma respeitosa, compreendendo nossos processos dificultosos, não deixando que nos limitem, para aprender a nos levantar após uma queda. Assim poderemos nos aceitar honestamente.
*Sample – palavra inglesa que significa “amostra” – é basicamente o recorte de trechos, instrumentos isolados ou batidas de outras músicas já existentes, captura de sons do cotidiano, sons naturais ou elaborados que podem ser misturados e usados para se criar uma nova música.
OUÇA O EP “ISO.LADOS” DE SAM SILVA
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Ficha técnica:
Produção e Direção Musical por Sam Silva
Arranjos de Synth, Samples, Beats e Fxs por Sam Silva
Gravação de Voz e Mixagem por Matheus Pinto no Estúdio Caosnavial
Masterizado por Vinicius Aquino no Estúdio Carranca
Arranjos e gravação de baixo nas músicas “Dias de Sol” e “Liberdade” por Izaías Neto
Arranjos e Gravação de Guitarra nas faixas “Dias de Sol” e “Espelhos” por Raphael Urbano e Sam Silva
Arranjos e gravação de Baixo, Guitarra e Synth em “Madrugadas” por Juliano Holanda
Sample de piano em “Espelhos” gravado por Jonatas Onofre.
Vozes dos Artistas Participantes gravados por eles mesmos, em casa.
Participação de Gabi da Pele Preta na faixa “Liberdade”, Jonatas Onofre em “Espelhos” e Juliano Holanda em “Madrugadas”.
Fotos por Matheus Oliveira
Designer, Criação de Capa e produção gráfica: Lucas Torres
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