Como a anarquia pode reanimar o carnaval tradicional
Por Guilherme Souza
Goiana tem um dos carnavais mais tradicionais de Pernambuco que se tem conhecimento. O ciclo carnavalesco aqui é histórico e espetacular, contando com agremiações de caboclinhos, maracatus, bois, burrinhas, ursos, as Pretinhas do Congo, diversos blocos, dentre eles as Viúvas Virgens como um dos mais conhecidos e os bailes animados pelas Orquestras de Frevo. Aqui, o espírito folião toma conta das ruas e é reconhecido pelo valor cultural que merece, se não pela gestão municipal, mas pelos fazedores de cultura e brincantes que anseiam a chegada dessa época festiva. É um sentimento de alegria e liberdade que nos acompanha desde os primeiros anos de vida e é cultivado ao decorrer dela, pois vamos entendendo que não se trata apenas de pura diversão, mas de uma manifestação política e artística genuína do povo, da classe trabalhadora. E é justamente isso o que a troça Os barbudos que se virem representa.
Mas, antes de falarmos sobre essa manifestação carnavalesca de Goiana, que tal conhecermos melhor dois conceitos importantes sobre ela? O primeiro é “troça”. Muito se fala sobre blocos e bloquinhos, mas “troça” ainda pode causar estranheza aos menos familiarizados com o termo. As troças carnavalescas são basicamente pequenas agremiações que se parecem com os clubes de Frevo, mas são menores e mais simples. São muito comuns nos carnavais do nordeste brasileiro e tocam prioritariamente Frevo e marchinhas clássicas. Saem pela manhã ou pela tarde, tendo o improviso, a descontração e a irreverência com marcas. A palavra “troça” vem do verbo “troçar”, que significa “ridicularizar”, “escarnecer”, “zombar de algo ou alguém”. O surgimento de uma troça está quase sempre ligado a uma história pitoresca, uma brincadeira nascida de uma reunião de amigos, às vezes com viés crítico ou político. O outro conceito é sobre o termo “anárquico”. A palavra anarquia é comumente usada de forma pejorativa para designar algazarra, bagunça e falta de ordem, mas não se trata disso. Resumidamente, a anarquia é uma teoria política que rejeita a existência de um governo. Trata-se de uma ideologia que não é a favor de nenhum tipo de hierarquia ou dominação imposta. Ao contrário do que muitos pensam, no contexto político anarquia nada tem a ver com desordem e confusão. O conceito de anarquia defende que a sociedade tenha sim uma organização social, porem, considera que ela não deva ser imposta e sim acordada entre os cidadãos. Não deve haver, por exemplo, uma divisão de classes sociais e nem o domínio de um grupo sobre outro. A ideia central da anarquia é a de que sem a opressão do autoritarismo, a sociedade passaria a ser mais fraterna e igualitária, como resultado do esforço de cada cidadão.
Conceitos esclarecidos, vamos então conhecer sobre a troça anárquica Os barbudos que se virem. Antes de ser uma troça de fato, Os barbudos que se virem era o nome do estúdio de criação e soluções de Design Gráfico de Raphael Urbano, que é artista e criador da troça. Desde o começo, o mote sempre foi trabalhar com a criatividade e evitar a mesmice, como Urbano conta:
“ A proposta é trabalhar toda essa referência cultural alternativa que temos. Muitos artistas goianenses, gente do audiovisual e gente alternativa comparecem. É a busca de uma nova linguagem. Não é sobre o formato dos blocos de famílias tradicionais, é sobre aquela questão do Carnaval onde as amizades se juntam para se divertir e compartilhar essa experiência com uma orquestra de Frevo, mas também com discotecagem e outras atrações. A primeira edição que eu realizei, em 2017, foi na Saboeira e contou com Open Bar na concentração, concurso de fantasia, da dança mais engraçada, essas coisas que proporcionam aquela alegria genuína do Carnaval, a irreverência, todo aquele chamego e profanação das coisas… Então, a ideia dos Barbudos vem dessa questão da criatividade, do improviso das fantasias… É um troça muito inspirada no bloco ‘Como Assim?’ (também de Goiana, existe desde 2006). Foi onde eu comecei a brincar o Carnaval e me encantei pela possibilidade das fantasias, porque quando eu era criança, lembro que Goiana tinha muitos blocos inspirados no Carnaval da Bahia, com abadás e trio elétrico. Já o ‘Como Assim?’ começou com poucas pessoas, mas com Orquestra de Frevo, e aquilo me contagiou tanto que até hoje gosto de prestigiar. Eu acho que Goiana precisa de outros blocos de resistência artística que comecem a vibrar mais na cidade. Não podemos continuar pensando que Olinda e Recife tem o melhor Carnaval, também podemos conseguir realizar isso aqui. Para isso, é preciso que existam outros blocos e troças, com temas variados para conseguirmos criar uma força cultural do Carnaval de rua. A intenção dos Barbudos é de se fazer consumir mais a cultura popular de Goiana e menos comercial.
A fala de Urbano exemplifica muito bem a diferença de um Carnaval que é produto de uma cultura de massa, de um que é fruto da cultura popular – onde a troça dos Barbudos está inserida. Enquanto a cultura de massa atende as vontades do mercado capitalista que tem a única intenção de obter lucro através da manipulação, a cultura popular é feita do povo para o povo, fomentando meios tradicionais e orgânicos de expressões artísticas que revelam uma identidade sócio cultural legítima. Claro, seria inadequado ditar regras para se curtir o Carnaval ou mesmo fazer uma comparação entre o Carnaval de Pernambuco e o de São Paulo, pois ambos tem sua importância histórica (embora saibamos qual é o melhor…); mas, o fato é que o Carnaval é uma festividade política e popular que se torna bem mais interessante quando se tem essa percepção, e Urbano reflete a respeito:
“O que acho massa no Carnaval de Goiana é que ele não é gigante feito o de Olinda e Recife, onde às vezes você não consegue nem respirar nos locais. Poder se divertir e extravasar é o que importa nessa época. Quanto mais eu vou percebendo que isso para uma cidade agrega um certo tipo de valor político, para não consumir tanto o Carnaval de massa, como era antigamente em Goiana. Não criticando, mas defendendo mais o lado da brincadeira em si. Seguir uma Orquestra cantando as composições de Carnaval é muito bonito e devemos dar continuidade a essa tradição para que se prolifere, para que as ruas não fiquem apenas emparelhadas por paredões de som e que haja uma apreciação do Frevo, do calor do Carnaval que é muito lindo.”
Depois da primeira edição em 2017, a segunda só veio acontecer em 2019, com a concentração realizada no Ateliê Valcira Santiago. Só agora, em 2023, vai acontecer a terceira edição. E a razão desse tempo entre as edições tem um motivo. Mesmo antes da pandemia da Covid-19 ser decretada, o Carnaval goianense já passava por dificuldades, sendo a principal delas, a falta de incentivo financeiro e cultural para se realizar as festividades típicas, que exigem muita organização, preparação, confecção das roupas, decoração das agremiações, ensaios e etc. Um bloco novo de Carnaval, ou troça, vai encontrar ainda mais dificuldades para desfilar pelas ruas da cidade, principalmente se o fundador não tiver recursos financeiros para custear as demandas e não tiver contatos que possam contribuir generosamente para a brincadeira acontecer. O Carnaval é uma brincadeira séria em que muitas pessoas conseguem uma grande fonte de renda, pode gerar muitos empregos temporários, retorno financeiro e visibilidade turística, se existir competência para gerir e fomentar essa efervescência cultural.
Foi justamente por isso que Urbano realizou uma prévia dos Barbudos no Sebastião Café e Bar, para levantar fundos e fazer a troça acontecer. Ele explica:
“Muitas vezes precisamos do setor público para conseguir dar continuidade a essas coisas. Tive que fazer essa prévia para arcar com os custos do bloco, porque temos que valorizar os artistas, afinal eles cobram cachê para tocar e não curto a ideia de fazer um bloco pago. As pessoas têm o direito de brincar no Carnaval. O Carnaval é político. Uma coisa que eu percebo muito sobre a gestão municipal é que é difícil conseguir um certo reconhecimento, então, quando penso que, se eu não correr pelo meu bloco e se não encontrar parceiros, eu vou ficar a mercê da Prefeitura e eu não uma pessoa ligada a Prefeitura. O bloco tem muita mais resistência por causa do pessoal que tem vontade de fazer acontecer, de ajudar, mais do que a gestão municipal, porque estão muito mais preocupados em realizar um cadastro das agremiações e blocos, mas não chega junto de fato. No fim, o Carnaval quem faz é a gente, e quando alguém vem querer ajudar, incentivar, isso me deixa muito feliz e é o que me deixa mais despreocupado se a Prefeitura vai dar alguma visibilidade, pois dificilmente dá.”
Ele conclui sua linha de raciocínio:
“Eu sempre tive o apoio do Coletivo Útero, do qual eu faço parte, e também dos meu amigos. Isso para mim é mais importante do que estar realizando a troça todo ano. Claro, espero que se torne algo tradicional da cidade, mais uma alegria, mas é difícil de se manter essa energia toda. Em 2020 o bloco não saiu por causa da questão da pandemia, mas esse ano precisa sair porque precisamos pegar as cinzas que se acumularam de 2021 e 2022 e queimá-las para começar um ciclo novo. Esse ano estou vindo com mais vontade e já pretendo fazer ano que vem. Espero que futuramente haja mais espaços e diálogos entre a Prefeitura e os blocos tradicionais, os fazedores de cultura, brincantes, enfim, para gerar ideias. É muito especial criar esse momento de referência de onde moramos, de rolar aquela identificação e perceber que está todo mundo curtindo e não é uma festa comercial, é do povo para o povo.”
A terceira edição da troça carnavalesca anárquica, alternativa e artística Os barbudos que se virem irá acontecer às 16 horas, no próximo domingo (dia 12/02) no Ateliê Valcira Santiago, localizado na Rua da Conceição, em Goiana-PE. As atrações serão: DJ Rapha Urbano, DJ TRANS&TÓRIA e DJ Mobius, fazendo uma discotecagem para animar todos os espíritos carnavalescos. ENTRADA GRATUITA. Compareça e fortaleça a cena cultural alternativa da sua cidade!
Você pode contribuir com qualquer valor para que a troça desfile com uma Orquestra de Frevo pelas ruas de Goiana e ainda participa de dois sorteios! Pix Email: raphaelurbano@gmail.com (Raphael Urbano Pessoa.)
Links úteis para você conhecer melhor e ficar por dentro da cultura independente e alternativa de Goiana:
https://www.instagram.com/osbarbudosquesevirem/
https://www.instagram.com/coletivoutero/
https://www.instagram.com/lampejofotografia/
https://www.instagram.com/blococomoassim/
Carnaval é o tempo e a hora de recarregar energias transformadoras. Quem tem barba negativa que a coloque de molho 🤪 Nosso barbudinho hot total Rafinha é tudo de bom.
Comentário por Cristina França em fevereiro 10, 2023 as 3:04 pmSALVE Os Barbudos Que Se Virem