A artista vem ocupando espaço no cenário da música autoral de Goiana e mata norte de PE, através de uma maneira sensível, mas ao mesmo tempo questionando condições socioculturais enquanto mulher preta que busca garantir o seu lugar.
Por Guilherme Souza
A respiração é um processo automático que fazemos sem perceber, todos os dias, o tempo todo. É dessa forma que sabemos que estamos vivos. Não é um dom, é uma necessidade indispensável à condição humana. Já nascemos sabendo. E, no decorrer das nossas vidas, vamos adquirindo outras necessidades, que embora não sejam automáticas, são essenciais para dar um sentido, um significado que faça valer a nossa existência. Desde a infância vamos descobrindo, experimentando e nos deslumbrando com as curiosidades da vida. Formas de se conectar com o mundo, fazer parte de uma família, pertencer a uma comunidade, buscar formas de expressar nossos sentimentos, são fatores importantes para o autoconhecimento. E para uma criança, tudo pode ser impressionante, desde um prego sendo batido, uma comida sendo preparada, até os acordes que soam de um violão. É na infância que os sonhos começam a ser criados e moldados por desejos e vivencias. Geralmente, “casa de vó” é um lugar bem propenso para fomentar o surgimento dessas inquietações mágicas que habitam a mente de uma criança. E quando se trata de alguma manifestação artística, a música pode levar uma mente infantil para longe, muito longe. Tudo pode virar música, inclusive um prego sendo batido e o som das panelas e talheres.
Foi desse jeito que a cantora e compositora goianense Luana Tavares entrou no universo musical, frequentando a casa da avó, como ela conta:
“Sempre tinham as reuniões na cozinha, em volta de mesa, com meus tios, meus primos, todo mundo tocava e cantava alguma coisa, e eu adorava ir porque me fascinava com os instrumentos. Mesmo pequena, aquilo me chamava atenção. Meu tio tocava violão e ele tinha uma postura clássica, daquele que o braço fica bem pra cima. Eu lembro como se fosse hoje ele sentado de costas para pia, na mesa… e os instrumentos percussivos. Eu não entendia como aquilo podia fazer tanto barulho de uma forma que fazia sentido na minha cabeça. Eu sempre era aquela prima pentelha que queria pegar nos instrumentos, tá se metendo onde não era chamada, mas meus primos sempre tiveram paciência e sempre viram em mim uma percepção rítmica para os instrumentos percussivos de samba, como o reco-reco, que foi o primeiro instrumento que eu toquei e depois fui aprendendo outros. Eu achava muito bacana a energia que rolava, aquele batuque, aquela cantoria e a alegria. A palma da mão do samba. Então o astral era muito lá em cima e tudo aquilo me encantava.
Os domingos não são completamente melancólicos quando somos crianças e ainda por cima temos o privilégio de ter vivencias na casa dos avós.
Para quem realmente aprecia a música em todo seu sentido e forma, é natural que uma hora surja a inquietação de não apenas ouvir, mas de compor a própria música como forma de se expressar e contar histórias. Porém, antes desse momento, a pessoa vai aprendendo a tocar o instrumento e a cantar através de artistas que admira, reproduzindo versões de canções e se inspirando pelas influências que absorve. Até que uma confiança é formada e o estalo é ouvido: “Eu também posso fazer música!” Foi durante as emoções vulcânicas da adolescência que Luana começou a compor baseada em suas histórias românticas e nas amizades, época em que ganhou o violão do pai por insistência:
“Foi como Alice no País das Maravilhas pra mim. Quando comecei a aprender os acordes, já fui inventando coisas, tocando melodias. Talvez seja clichê, mas hoje, a vida é uma constante inspiração, tudo aquilo que me provoca interesse, as pessoas, a natureza, os sentimentos, as histórias… tudo isso me inspira de alguma forma. Eu tento buscar inspiração em tudo, e ultimamente eu tenho tentado tornar a composição um exercício, uma forma de me desafiar a escrever sobre várias coisas, mesmo que não se tornem músicas, mas eu tento desaguar no papel aquilo que tá mexendo por dentro. Me superar pra desvendar caminhos diferentes, estilos, então eu vou buscando. Eu sempre estou com essa curiosidade e a vontade de aprender, viver cada experiência. As vezes passo o dia sem fazer esse exercício, as vezes tenho me forçado a fazer isso. Muitas vezes eu consigo expressar na música o que eu não consigo dizer em palavras, numa conversa e acaba sendo a minha válvula de escape. Eu acho que se eu não escrevesse, não fizesse música, talvez eu não fosse aguentar, sabe?”
Independente do sentimento que a música pode passar para o ouvinte, existe um processo por traz dela que pode ter sido doloroso ou um alívio para quem a criou. Principalmente quando se trata da música que realmente te emociona, te toca, arrepia os pelos, ou ainda para os espiritualizados, arrepia até a alma. Essa é a música orgânica, que não é presa a nenhum estilo, mas ela passa uma verdade atemporal, sendo simples ou complexa em sua estrutura e letra, não importa. Após as primeiras composições da adolescência, Luana passa a ingressar em alguns grupos da região. O primeiro foi em meados de 2016, o Forró Avulso, onde começou fazendo participações, chegando a gravar a música “Até o sol raiar” no álbum deles, para logo após se tornar uma integrante fixa. Em seguida, foi vocal de apoio da banda de Lucas Torres, além de ter feito diversas participações em eventos musicais com outros e outras musicistas de Goiana e região.
Hoje, além de ser a vocalista da banda Baião Número Um, Luana vem construindo uma carreira solo de canções autorais baseada no seu leque de influencias. Ela explica:
“Eu vim de uma base de samba e tenho influência do samba, mesmo que isso não se verta nas minhas músicas. Eu sou apaixonada por Jorge Aragão. Dominguinhos é uma figura muito presente na minha construção musical. Acho linda a forma como ele escreve, simples, mas com uma carga poética muito forte. Tenho muita influência de Marisa Monte, até porque ela foi uma das primeiras artistas da MPB que me cativou, sua obra e posicionamento profissional e a voz nem preciso dizer, né? Sem falar de Gilberto Gil, Djavan…Também sou apaixonada pela Bossa Nova de Tom e Vinicius, acho que tem muito disso na minha música, apesar das minhas limitações técnicas e teóricas da música. Samira (Sam Silva, produtora musical e musicista de Goiana) me inspira, porque admiro ela, a forma como ela escreve, sou fã dela, sem demagogia, ela sabe disso… Eu acho que não tem como definir, é sempre uma mistura, uma variedade muito grande, uma linha de horizonte infinita de artistas que ouvi e venho ouvindo que acabam desaguando na minha música de algum jeito.”
Do Forró ao Rap – que atualmente é o estilo musical mais em alta no meio alternativo de Goiana – é notável que existem poucas mulheres envolvidas na área. Quando estão presentes, geralmente não estão em posição de destaque. Claro que é deveras importante a ocupação das mulheres no meio musical, seja atuando diretamente no âmbito artístico ou técnico, mas infelizmente, essa ainda não é uma realidade concreta. Os homens ainda tomam a frente e ditam as regras da indústria cultural musical, tanto de massa como no underground, e esse fato não deve ser tido como normal, baseado em costumes conservadores e patriarcais, mas deve ser contestado. E cabe ao homem artista, músico e técnico da área desenvolver um senso crítico a respeito dos seus privilégios para melhor entender as problemáticas machistas (pois também atingem o próprio homem) que insistem em contaminar esse cenário de atuação, tornando-se, assim, aliados na luta contra preconceitos de gênero. Luana fala a respeito dessa situação enquanto vocalista da Baião Número Um, que reflete um caso sintomático:
“Infelizmente temos essa balança desproporcional e ainda mais no estilo que fazemos, que é o forró tradicional, pé de serra. No meu conhecimento, são pouquíssimos grupos que têm mulheres a frente, como vocalista principal. É difícil vermos formações só com mulheres ou com mulheres na frente, guiando. Hoje em dia conseguimos ver mais mulheres com visibilidade, abrindo espaços nesse meio, mas ainda assim, ser mulher é complicado em qualquer lugar do mundo, seja ocupando um papel de destaque, de poder… quando a gente decide ser donas das nossas empresas, comandar setores na política, sempre somos desacreditadas, nos inferiorizam e nos limitam, só pelo fato de ser mulher. Eu sempre fui aquela menina que estava no meio dos meninos, e na música, tinha muito preconceito, até hoje… eu vejo meninas que têm aptidão musical, mas não se sentem bem-vindas, porque tem sempre estar mostrando que conseguem, que podem, enfim, é bem difícil. Eu me sinto feliz de fazer parte de uma banda e representar as mulheres, quer que seja no Baião Número Um ou no meu projeto, sempre vou ser aquela pessoa que vai tá lá ocupando espaço, pelo menos eu tento, né? Eu tento me fazer presente até pra incentivar, pra mostrar que a gente tem sim potencial, tem sim o direito de estar naquele ambiente, e espero não desanimar nessa caminhada, me manter firme, sempre representando as mulheres, que infelizmente são desvalorizadas pelo fato de só ser mulher. Temos Elba Ramalho ultrapassando gerações, Mariana Aydar, que sustenta uma banda de forró, tem a Bicho de Pé, Thais Macedo, Michele Andrade… é bom tê-las e ver que elas estão seguindo firme, isso dá mais vontade de continuar.
Como já é de conhecimento geral, a pandemia afetou todos os setores econômicos do país. Festas tradicionais como o Carnaval e o São João tiveram de ser devidamente suspensas para conter a propagação do Coronavírus. E os profissionais de cultura, que lucram justamente mais nessas épocas, se viram em um beco sem saída. Mesmo considerando o benefício do auxílio emergencial da Lei Aldir Blanc, regulamentada pelo governo depois de muita luta da oposição, ainda não foi o suficiente para compensar as perdas. Deixando o romantismo de lado, foi preciso se reinventar para sobreviver com dignidade e continuar fazendo arte em meio à crise econômica e social. Respeitar a quarentena continua funcionando efetivamente no combate ao Coronavírus, e o isolamento social nos faz enxergar para dentro de si mesmo, nos ouvir melhor; e esse processo de autoconhecimento acaba influenciando diretamente numa composição musical, seja com pensamentos positivos ou obscuros.
E em tempos de incertezas, Luana vem explorando sua carreira solo e autoral. Ela faz parte de um cenário musical independente que vem dando vários frutos em Goiana, ajudando a levar o nome da cidade para além da Mata Norte Pernambucana. Ano passado em meados de junho, quando achávamos que a pandemia não fosse se estender até agora e ainda piorar, Luana gravou o videoclipe da música “Menino” em total confinamento, na sua casa, de forma independente, uma produção realizada em parceria com a Alcalinas Brisadas, produtora audiovisual de Goiana. Já nesse ano, ela lançou o videoclipe de “Reconstruir”, que foi uma produção originada por um projeto de conclusão do curso de publicidade de um amigo dela, produção toda goianense, exceto pela modelo com quem Luana contracena.
Luana reflete:
“Com a gravação do primeiro videoclipe que foi com a Alcalinas Brisadas, consegui angariar seguidores e mostrar um pouco do meu estilo, da minha voz. Com o segundo videoclipe eu acho que foi mais uma libertação, a música significa muito pra mim, e apesar de ter sido construída através de um trabalho de faculdade, pra mim foi a coisa mais profissional que eu já pude fazer por mim em questão de carreira solo. Depois eu consegui ter uma visibilidade maior até para algumas pessoas da cidade que não me conheciam como cantora. Eu acho que o mais importante é o reconhecimento das pessoas. Espero que a ideia tenha sido captada de certa forma, sou muito a grata a cada um deles que trabalharam comigo. Recebi muitas mensagens de que a música (“Reconstruir”) traz uma calma e ao mesmo tempo uma força. Muitas pessoas se identificaram e eu fiquei bastante feliz.”
Foi imposta uma ideia de que durante a pandemia, devemos estar sempre procurando formas de nos mantermos ativos, seja lendo um livro que sempre deixamos para depois, fazendo exercícios ou iniciando qualquer curso online, como se agora tivéssemos que seguir um regulamento que nos obriga a preencher o nosso tempo vago sendo produtivos. O home office, que incialmente se mostrou uma alternativa viável a ser pensada até pós pandemia, logo mostrou suas problemáticas, como o trabalho que nunca acaba e a falta de concentração e foco, uma vez que estamos constantemente ligados nas nossas redes sociais e sendo bombardeados por anúncios, dentre vários outros empecilhos. É claro que tudo isso afeta qualquer processo criativo, então é deveras necessário perceber quando devemos simplesmente nos desligar para posteriormente funcionar melhor. Desde o começo da pandemia até o presente momento, Luana revela que seu processo de composição continua oscilando:
“Muitas vezes eu passo a semana escrevendo todo dia e ás vezes eu nem toco, vou fazer outras coisas pra alimentar, poder escrever e ter mais clareza do que eu quero. A música é o meu lugar de sanidade, escrevo quando uma coisa tá me cutucando muito, tanto positivamente quanto negativamente, eu tento colocar pra fora, ás vezes vem em forma de música, ás vezes é só um texto mesmo… é assim que eu tenho tentado manter a sanidade durante esse ano e pouco de pandemia. Do ano passado pra cá, até a forma de escrever, algumas coisas foram mudando melodicamente, internamente. E eu tento não me cobrar produtividade, porque acho que já estamos num limite tão grande que extrapolar isso com uma das coisas que me mantém viva é demais pra mim. Mas todo dia tento buscar uma ideia nova e se não tem, tudo bem também, sabe? Eu não tô forçando nada nem cobrando de mim, mas continuo escrevendo, porque eu acho que é a minha cura.”
Luana vem ocupando espaço no cenário da música autoral independente de uma maneira sensível, ao mesmo tempo questionando condições socioculturais enquanto mulher preta que busca garantir seu lugar. Por isso, é preciso romper com padrões estéticos hegemônicos e exaltar a arte, a música, o trabalho e a beleza da mulher preta, como ela mesma afirma:
“Queremos ser respeitadas nas nossas subjetividades porque tem valor em tudo que a gente faz. A mulher preta vive à margem da margem, o espaço é muito mais reduzido e hoje em dia cada vez mais eu quero levantar essa voz enquanto mulher preta, das minhas vivências, das vivências das mulheres pretas que me cercam e a música também fala sobre isso, sobre aceitação, sobre saber o seu lugar, sobre reconstruir certas falas que a gente acaba falando pra gente mesma no decorrer da vida, de quantos lugares a gente se nega a estar por achar que não é pra gente, mas é nosso lugar sim. Então, acho que é importante a gente se reconstruir de mãos dadas, sabe? Todas nós.
Muitas vezes a inquietação da delicadeza pode ser mais assertiva no combate a qualquer tipo de preconceito do que usar fogo contra fogo.
” Demorei pra desaguar, mas aprendi
Primeiro a gente afoga pra emergir
Deixei lá no fundo tudo que me feriu
Trouxe o necessário pra reconstruir
Olho no espelho agora, posso enxergar
Toda força que havia perdido lugar
Cada lágrima em meu rosto é como cicatriz
Das tempestades vencidas dentro de mim
E a minha alma leve pôde dançar
Entre nuvens carregadas
Sem se molhar “
– Letra da música “Reconstruir” de Luana Tavares, compositora e interprete de Goiana, Zona da Mata Norte de Pernambuco.
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