Jornada Resistência: mantendo o fluxo do incentivo cultural independente para os jovens artistas locais

Movimento visa dar espaço para a arte e os diálogos da juventude periférica e marginalizada, provocando a cidade com intervenções culturais

Foto: Acervo

Por Guilherme Souza

Goiana possui um histórico de coletivos culturais independentes e de manifestações autônomas, no que diz respeito a realização de eventos alternativos, e embora eles tenham sua importância comprovada ao longo dos anos, sempre encontraram dificuldades em se manter, principalmente pela falta de incentivo financeiro (e interesse) do governo municipal. O coletivo Jornada Resistência é o que tem se sobressaído nos últimos tempos. O movimento tem seu início em 2017, na cidade de Goiana, e desde então, vem promovendo intervenções culturais de modo independente, usando das variadas linguagens artísticas para se manifestar e se comunicar, principalmente para com o público jovem e carente de eventos artísticos que atendam a suas demandas culturais. E esse é justamente o seu diferencial em relação aos movimentos que o antecederam: trazer consciência social, de classe, por meio do entretenimento artístico educacional. Aliada a cultura Hip Hop que sempre encontra espaço garantido nesses eventos, o Jornada Resistência vem se consolidando como um movimento literário-musical que abre as portas – e muitas vezes é a porta de entrada – para os jovens que desejam serem vistos através das suas expressões artísticas, com temas que provocam a construção social e a percepção da arte, incentivando assim a produção cultural de uma nova geração goianense.

Através da poesia marginal (ficando a margem de um sistema tradicional que subverte o elitismo da literatura e representa a voz das minorias), os poemas declamados apontam as mazelas da Goiana e da sociedade em geral por meio de versos críticos, de linguagem urbana, sem enfeites, e contam sobre a vivência das minorias marginalizadas em todo o país: a população negra, periférica, mulheres e a comunidade LGBTQ+.

Cartaz do Jornada Resistência / Outubro de 2022
Imagem: Acervo Jornada Resistência

Você pode conferir uma matéria aqui em nosso site a respeito da Mostra Goyanna de Artes, que aconteceu no Sesc Goiana e o Jornada Resistência marcou presença, postada no dia 25 de novembro de 2020, quando a pandemia da Covid-19 estava em seu auge:

Hoje, o Jornada Resistencia conta com seis pessoas na equipe de desenvolvimento, onde os temas de cada evento específico são escolhidos por meio de debates. As pautas e apresentações, por sua vez, podem ser feitas por meio de inscrições, através de um link na bio do Instagram @jornadaresistenciaoficial, podendo também ter artistas convidados pelo Sesc ou pela própria equipe do Jornada. Joh Kryst, que desempenha o papel de diretora geral do Jornada, é a responsável por lanças novos temas e administras as inscrições para as apresentações, além de ser curadora, designer para posts nas redes sociais e criação da identidade visual do Jornada. Hoje, o movimento conta com a Cactus Designer para elaboração das artes, e estão expandindo a equipe afim de inserir jovens nesse mercado, descobrindo as potencias locais.

Jho Kryst, que tem apenas 22 anos, é uma fazedora de cultura que está nesse meio desde o ventre de sua mãe, como ela mesma conta:

“Pertenço a cultura desde antes do nascimento. No ventre, dancei quadrilha com os meus pais. Quando cresci, não foi diferente: participei de várias quadrilhas como brincante e transitei assim pelas tribos de indígenas e caboclinhos. Quando conheci o Hip-Hop, encontrei um outro modo de viver a cultura de forma mais literária, através das poesias marginais e batalhas de rima, nas quais participo diretamente da organização como jurada, e faço parte da fundação do Jornada Resistência, que hoje abrange as demais demonstrações de arte, como teatro e dança. Hoje, me inspiro no cotidiano, em como a banalidade afeta o nosso modo de viver, principalmente nesse sistema onde o lucro está acima de todos, mas também em como me sinto diante disso tudo.”

Com uma experiência que começou a ser acumulada desde tão cedo, Jho é uma artista que busca se expressar atuando, dançando e escrevendo poesias, e muitas vezes – assim como vários artistas da sua geração que são abraçados pelo Jornada Resistencia – se apresentou no cineteatro do Sesc Ler Goiana. Inaugurada em 18 de outubro de 2013, a unidade do Sesc em Goiana é o sétimo Centro Educacional Sesc Ler instalado no Estado de Pernambuco. A unidade é um moderno complexo educacional, esportivo e cultural, beneficiando toda a população do munícipio e entorno. Essa parceria entre a instituição e o movimento se mostrou muito acertada, demonstrando um caso de mutualismo cultural, onde a Jornada pode usufruir de um local adequado e de qualidade técnica para realizar seus eventos de forma proveitosa, enquanto o Sesc pode abrigar um evento de importância para a fomentação da cultura independente de Goiana.

Jho explica como surgiu essa parceria:

“Recebemos o convite dos bibliotecários do Sesc Goiana, Dani e Diego. Assim, foi disponibilizada a biblioteca para alguns exibições do Jornada. Conseguimos lotar a biblioteca, aproximando os jovens dos livros e ao próprio espaço que é aberto, acolhedor e conta com uma equipe incrível.”

Joh Kryst, diretora geral do Jornada Resistência, artista e fomentadora cultural
Imagem: Acervo Jornada Resistência

Você pode conferir a cobertura de um evento do Jornada Resistência que aconteceu na Mostra Goyanna de Artes 2020, realizada no SESC LER Goiana. Batemos um papo com Jorge Souza e Eva, integrantes do coletivo:

Entretanto, um fato que há tempos assombra os fazedores da cultura independente e popular de Goiana, é o já conhecido descaso das instituições governamentais. Uma vez que a cultura goianense padece sob o desinteresse da máquina pública, ela acaba se tornando coisa menor para a população, que não consegue enxergar a própria riqueza cultural da sua cidade e, consequentemente, não a valoriza e destila preconceitos sobre a mesma. É deveras necessário que o Estado desenvolva políticas públicas para atender as demandas da cultura popular, responsável por aquecer a economia que envolve uma gama extensa de trabalhadores, passando desde os técnicos de produção geral até os vendedores ambulantes. Contudo, se o Estado não age em prol da classe trabalhadora, é ela mesma que precisa deter os meios de produção do fazer cultural, afim de combater os processos burocráticos que impedem as manifestações culturais legítimas do povo. A expressividade artística popular não pode ficar refém de uma elite cultural conservadora que quer tomar para si o poder de julgar o que é digno ou não de apreciação e investimento. O historiador e produtor cultural goianense Zinho (em entrevista para uma matéria do MATA Goiana), sabiamente refletiu sobre essa problemática correlacionada:

“A importância da identidade negra aqui em Goiana é bastante presente, apesar das políticas de invisibilidade, e nelas você não vê identificação nenhuma do povo negro (…). Uma política voltada para a identidade negra tem que começar primeiro pela visibilidade, segundo, dar uma sustentabilidade nas atividades relacionadas. O Brasil tem uma população majoritariamente negra e Goiana não é diferente, então não faz sentido essa invisibilidade.”

Você pode conferir essa matéria no nosso site clicando nesse link:

É preciso conquistar a liberdade da autonomia para exercer a cultura popular sem os empecilhos de um Estado burocrático. E essa liberdade, esse direito, não virá sem luta, sem resistência, sem a construção de uma consciência política. Ela virá com a classe trabalhadora em constante estado de organização, desenvolvendo meios de aliar teoria e prática para educar, fomentar e instigar fazedores de cultura e artistas a se politizarem e dominarem a parte burocrática, como por exemplo, de inscrever os próprios projetos em editais. É esse o caminho que o Jornada Resistência vem trilhando.

Intervenção artística do Jornada Resistência da biblioteca do Sesc Ler Goiana
Imagem: Acervo Jornada Resistência

Jho revela a maior dificuldade que ela percebe no cenário cultural de Goiana:

“A falta de políticas públicas para incentivo da arte, não apenas admira-la. Pois, quem produz, como as tribos de caboclinhos, não são reconhecidas como produtores culturais e nem assistidas depois do tempo carnavalesco. Creio que a gestão municipal não conhece a cidade, não sabe o que se passa nas ruas e como elas são vividas, e se sabem, está na hora de incentivar de forma direta com orientação de cunho burocrático e recursos para desenvolvimentos. Precisamos novamente fomentar o pensamento cultural, porque tudo tem seu processo, e envolver pessoas que nem imaginam como isso funciona, estimula a valorização real do produto, seja ele uma poesia, uma música ou um passo de dança…”

E ela continua a respeito do Jornada Resistência:

“Nosso único parceiro é o Sesc. E, devida a dupla jornada da maioria das pessoas que participam da nossa organização, não conseguimos ir em busca de novos colaboradores. Mas, estamos abertos a novos parceiros. Colhemos várias experiências e fomos a vários lugares que não imaginávamos que iriamos chegar. Levamos o Jornada para pessoas que nem sabiam o que era uma poesia, como nossa participação no Sesc Jovem em Casa Amarela, São Lourenço, Santa Rita, e esse é um dos nossos maiores frutos. E para o futuro, queremos capacitar todos os poetas que temos, todos os artistas que trilham essa caminho conosco! O Jornada está aberto e convida a gestão e a todos para conhecer o nosso trabalho e vislumbrar esse novo movimento artístico da nossa cidade.”

A última ação do Jornada Resistência de 2022 aconteceu no dia 16 de dezembro, no novo espaço cultural Sebastião Café & Bar, com temática livre, dando liberdade para qualquer pessoa desenvolver no momento a sua intervenção artística, fosse por meio de poesia, música, dança ou encenação. Uma das temáticas abordadas em uma roda de conversa foi sobre o amor. Com pessoas de diferentes idades participando do debate, mas em sua maioria jovens na faixa dos vinte, foi construído um diálogo de diferentes perspectivas, todas elas cheias de experiências e vivências que contemplavam sentimentos variados, indo desde a solidão, novas descobertas e até a noção do amor enquanto propriedade em uma sociedade capitalista. Este que vos escreve estava presente neste debate, e não podia deixar passar a oportunidade de ler um trecho de uma carta escrita pelo teórico político russo, sociólogo, filósofo e revolucionário anarquista, Mikhail Bakunin, que data de 29 de março de 1845:

“Amar é querer a liberdade, a completa independência do outro; o primeiro ato do verdadeiro amor é a emancipação completa do objeto que se ama; não se pode amar verdadeiramente a não ser alguém perfeitamente livre, independente, não só de todos os demais, mas também, e, sobretudo, daquele de quem é amado e a quem ama. (…) querer a independência daquele a quem se ama é amar uma coisa e não um ser humano, porque o que distingue o ser humano das coisas é a liberdade; e se o amor implicar também a dependência, é o mais perigoso e infame do mundo, porque é então uma fonte inesgotável de escravidão e de embrutecimento para toda a humanidade.”

Cartaz do último evento do Jornada Resistência em 2022

Os aplausos que se seguiram não vieram em vão. Bakunin é inspirador. Sua vida e suas palavras são constituídas por uma jornada de resistência de quem viveu como uma ativista da causa em que acreditava e ajudou a escrevê-la com suor, lágrimas e sangue. E cada evento do Jornada Resistência traz em si esse ideal libertário de construir, fomentar uma cultura onde a revolução seja feita de baixo para cima, de organização horizontal, pela classe trabalhadora e discriminada: a população negra, a comunidade LGBTQIA+, as mulheres, o povo pobre e periférico, dentre outras minorias que querem construir uma sociedade onde a compreensão e o respeito às diferenças seja tanto um dever como um direito, garantidos e assistidos em uma democracia popular. Não será fácil nem de um dia para o outro, mas é possível fazer pequenas revoluções diárias, como um trabalho de formiguinhas organizadas em prol do coletivo. Se você quer fazer parte desse processo, não perca a trajetória do Jornada Resistência.

Imagem: Acervo Jornada Resistência

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