Segundo semestre de 2022 foi marcado pela alta frequência da cultura independente .
Por Guilherme Souza
Não, a pandemia ainda não acabou. Embora a sua fase aguda tenha passado devido ao avanço dos quadros vacinais, enfrentamos agora mais uma onda onde é recomendável o uso de máscaras novamente, e mesmo que ela não seja tão impactante, uma vez que a população está mais protegida, o fato é que iremos conviver um bom tempo sob um estado pandêmico e a Covid continuará sendo um assunto recorrente. Outro fato inegável, é que a cultura independente e alternativa de Goiana pôde respirar de alívio no segundo semestre de 2022. Com o relaxamento das medidas sanitárias de combate ao Covid nos meses anteriores, os eventos e manifestações que estavam parados acerca de dois anos puderam voltar a acontecer regularmente. Na verdade, durante esse período mais tenso, eles se mantiveram de forma online através das lives, que era (e ainda é) uma forma que os artistas, musicistas e produtores dessa esfera trabalhista encontraram de poder realizar, divulgar e se sustentar através dos seus trabalhos, além dos pouquíssimos incentivos culturais promovidos pelas instituições governamentais, como a Lei Aldir Blanc, de âmbito federal.
Entretanto, ativado no modo resistência como sempre foi, os fazedores da cultura alternativa de Goiana nunca foram de esperar acontecer, mas sim de fazer acontecer por iniciativa própria. É só pegar, por exemplo, o histórico recente do começo dos anos 2000, onde os eventos de Rock eram realizados no Casarão Imperial (batizado informalmente de Imperial Rock) localizado na Rua Direita; as manifestações itinerantes do coletivo poético Silêncio Interrompido; e o Alafiá – Manifestação Cultural de Identidade Negra e Popular, ponto de cultura que mantinha um evento musical que acontecia todo segundo domingo do mês e tinha oficinas e cursos sobre educação e empoderamento para a população negra de Goiana, afim de difundir a cultura afro-brasileira. Isso sem contar os eventos realizados por coletivos nas praças da cidade na base da filosofia “faça você mesmo”, como o Joey Jambo, que nasceu nos fundos de um quintal e o Coletivo Útero, responsável pelas festas do Dia do Rock, Halloween e outras temáticas que procurava reunir a multiculturalidade e sua efervescência. O que essas realizações tinham em comum, além do esforço coletivo para acontecerem, era a falta de incentivo financeiro e políticas públicas da instituição governamental municipal, que só agia quando procurada, e ainda por cima de forma precária, sem compromisso.
As manifestações culturais de cunho popular que têm a música como expressão artística, tais como o Coco, o Brega, o Funk, o Rock e o Rap são historicamente responsáveis por traduzir os anseios marginalizados da classe trabalhadora. Antes de qualquer coisa, a música é um produto de entretenimento, mas também pode ser usada, ao mesmo tempo, como arma de resistência contra o conservadorismo da elite e suas políticas reacionárias, preconceituosas e racistas. Não é à toa que a propagação de ideias vindas das camadas menos favorecidas da sociedade é chamada de popular pelo seu fazer independente, pois não necessariamente precisam de políticas públicas do Estado para acontecerem, apesar dessas fomentações institucionais serem inegavelmente importantes para a maior compreensão do seu conteúdo de forma inclusiva, diversificada e representativa, com o intuito de fortalecer a democracia popular. As Pretinhas do Congo do Baldo do Rio (eleito Patrimônio Vivo de Pernambuco) e da Nação Africana, situada na praia de Carne de Vaca, ambas manifestações culturais exclusivamente goianenses que misturam teatralidade, musicalidade e dança, e o saudoso coquista Sebastião Grosso (considerado o Rei do Coco, título esse que deu nome ao seu primeiro e único álbum musical, lançado no dia do seu aniversário e no dia que veio a falecer, acontecimento que ele chegou a profetizar) são exemplos expoentes de artistas que foram valorizados pela sua resistência cultural e tiveram sua importância devidamente reconhecida pelo Estado de Pernambuco, recebendo um incentivo financeiro para preservar seus saberes culturais tradicionais, incentivando-os a transmitir seus conhecimentos.
Saindo do âmbito da cultura popular tradicional e entrando na perspectiva das manifestações culturais contemporâneas, é o Hip Hop que tem dado o tom alternativo em Goiana, e isso desde antes da pandemia ser decretada. Através das ocupações das praças Duque de Caxias, João Pessoa (também conhecida como a 13 de Maio) e a do Wi-Fi, o movimento Hip-Hop tem realizado diversas batalhas de Rap, atraindo MCs e público de várias cidades de Pernambuco, da Zona da Mata à Capital. Roberto RT, rapper integrante da nova formação do R.V.A (Rapaziada Voz Ativa, grupo de Rap pioneiro em Goiana) e fundador e organizador da Batalha da Duque da seu parecer sobre os acontecimentos desse ano e as pretensões para 2023:
“Esse ano foi muito importante, conseguimos diversas parcerias para o movimento, conseguimos várias conexões fora e dentro do Estado, e essas presenças foram muito importantes para o fortalecimento da Batalha da Duque. Mostramos nossa força para a população de Goiana mesmo durante uma pandemia. Lotamos diversas vezes a praça Duque de Caxias, mesmo sem recursos, mas com muita vontade e determinação de fazer acontecer. Ano que vem vai ser um ano focado totalmente para o profissionalismo da Batalha da Duque, iremos nos dedicar ao máximo para que a conseguir o que almejamos.”
Outra manifestação cultural alternativa bem conhecida do cenário underground de Goiana e já citada anteriormente que voltou a acontecer, foram os eventos de Rock. Há tempos, mesmo antes do advento da pandemia, não se tinha eventos de Rock, principalmente porque as bandas remanescentes da cidade nos anos 2010 haviam dado uma pausa ou simplesmente encerrado as atividades por motivos diversos. Contudo, seja através da organização de coletivos ou feitos de forma puramente informal, os eventos em comemoração ao Dia do Rock (13 de julho) e o Halloween (31 de outubro) sempre foram marcantes, para o bem ou para o mal, mas criando o senso de amadurecimento dos produtores e agitadores culturais. E foi justamente com a experiência adquirida através dos anos que o MATA Goiana – que possui colaboradores intimamente ligados ao cenário do Rock de Goiana – realizou o evento do Dia do Rock no novo espaço cultural Sebastião Café e Bar que fez a sua estreia (esse lugar tem tudo para se tornar mais um abrigo das realizações culturais alternativas de Goiana, que já conta com o já aclamado Atelier Valcira Santiago). O evento reuniu fãs da música pesada das antigas e atuais, tanto que até mesmo um bebê marcou presença. As atrações, todas goianenses, foram: a banda de covers Time Division, projeto do artista e cantor Diego Lucena, que finalmente pôde estrear; o DJ Dwende, persona artística do músico Raphael Urbano que vem desenvolvendo música eletrônica; e a também banda cover Canaviral, composta por integrantes de bandas autorais da cidade e que tem o intuito de misturar suas influências musicais e tocar clássicos do Rock que não são escolhas óbvias. Revivendo um sentimento nostálgico dos shows de Rock na cidade, mas com o pensamento no futuro, o evento foi responsável por dar aquele gás que há muito não se via em uma Goiana defasada culturalmente pela pandemia. Um dos fatos marcantes desse evento, foi perceber a renovação do público, principalmente composto por adeptos da cultura Hip-Hop, que vem se consolidando cada vez mais na cidade e fez questão de marcar presença nesse dia de comemoração ao Rock, tanto pelo entretenimento, como por perceber a semelhança de resistência cultural com o Rap, estilos musicais que conseguem dialogar entre si. Tanto que, pouco tempo depois, percebendo a boa estrutura do Sebastião Café e Bar, foi realizado uma batalha de Rap no local, lotando do mesmo jeito que o show de Rock conseguiu.
Alguns meses depois, foi a vez do já tradicional Halloween goianense retornar, e mais uma vez sob a produção do Coletivo Útero, que já foi responsável pela realização de eventos memoráveis, inclusive de outros halloweens históricos. Sem dúvida, esse foi o mais multicultural já realizado, pois os organizadores souberam aproveitar a tão falada efervescência cultural do momento, bem como a estrutura do próprio espaço Sebastião Café e Bar, que conta com três ambientes, sendo o bar localizado no térreo e os outros dois andares para comportar as atrações, proporcionando uma dinâmica mais atrativa para o público. As atrações foram: o R.V.A (Rapaziada Voz Ativa) grupo goianense de Rap e pioneiro na cidade; Sam Silva, musicista, compositora e produtora musical apresentando seu trabalho solo cheio de texturas envolventes; DJ TRANS&TÓRIA, influencia por trilhas sonoras de filmes; DJ Dwende transtornado com seu Psytrance; DJ Bruno Banshees, criando um clima sexy e soturno através da sua playlist gótica; DJ Maremaravilha com seu estilo Darkwave e Industrial botando geral para dançar; a Canaviral, projeto de Rock cover, formado por nomes experientes da cena autoral de Goiana; e a Vênus em Fúria, uma das bandas autorais mais aclamadas dos anos 2010 do cenário alternativo de Goiana e região, e que havia entrado em um longo hiato, marcando seu retorno ás atividades nesse evento com uma formação querida e aclamada pelos seus shows frenéticos. João Sopa, músico e produtor do Coletivo Útero apresenta uma reflexão pertinente acerca do assunto abordado nessa matéria:
“A pandemia e toda a morbidez que ela trouxe consigo deixou as pessoas apavoradas. Além do isolamento, vimos a perca de parentes e amigos pra essa doença, ainda mais com as negações do governo. Paralelamente a gente também pôde ver cortes bastante incisivos na questão da cultura e, para um povo que estava trancafiado, enxergo isso como outro golpe devastador, já que as pessoas isoladas estavam tentando matar o tédio com as diversas lives oferecidas por diversos artistas de renome, ou pelos enormes esforços daqueles com pouco dinheiro, mas muita vontade. Nesse contexto, a gente pode entender uma parada: as pessoas estavam isoladas, sedentas por arte e, principalmente, com saudades das reuniões de amigos, das festas. Meio que a gente pode ver isso refletido na história: toda catástrofe de larga escala ou pandemias são sucedidas com movimentos artísticos inovadores. A gente pôde ver o Renascimento e o Humanismo após a Peste Negra, o Dadaísmo, surrealismo e outros movimentos logo após a Gripe Espanhola, dentre tantos outros.
Refletindo isso diretamente no nosso meio, eu pude observar essa vontade quando Juliana, outro membro do nosso Coletivo, chegou na minha para revivermos o Coletivo Útero, que já tava sem atividade há uns bons anos. Acho que o saldo é completamente positivo. Desde o apoio que oferecemos ao Dia do Rock até nosso último evento, o Halloween, a gente pôde praticamente lotar a casa cedida por Cristina França, o Sebastião Café Bar, e finalmente pudemos realizar um grande sonho de ter um espaço excelente, aberto pra propostas de culturas underground como o Hip-Hop e o Rock, que geralmente são esquecidas pelo governo desde sempre.
Acho que tudo isso é movido por essa vontade inexplicável vindo do pós-pandemia. O que posso tirar como lição aqui é que o DIY (Do It Youself: faça você mesmo) nunca esteve tão vivo e tão presente dentre aqueles que tentam fazer cultura alternativa na cidade.”
A reflexão de João Sopa, totalmente conectada com a realidade, mostra, por exemplo, que o trabalho musical, seja de um projeto de covers apenas por diversão, ou com foco no desenvolvimento autoral, ajuda a movimentar o cenário alternativo de uma cidade como Goiana, por isso a importância de um devido incentivo governamental que desenvolva políticas públicas de desenvolvimento para a cultura independente. Um exemplo concreto disso, é o lançamento do EP Recortes do Tempo, da longeva banda goianense, Prisma Orbe, formada em 2003. A realização do projeto foi possível graças ao edital LAB-PE da Lei Aldir Blanc Pernambuco, e foi gravado, mixado e masterizado no Caosnavial Studio do Atelier Valcira Santiago, que busca promover e desenvolver ações artísticas e culturais. Podemos citar também a banda cover Time Division sendo convidada para se apresentar em festivais em outras cidades da Mata Norte e até mesmo na capital paraibana. Isso faz com que os artistas, grupos e bandas possam fazer shows além da cidade, inspirando músicos iniciantes, explorando e mantendo contato com outros músicos e produtores das cidades vizinhas, fortalecendo assim, todo um tecido cultural independente que gera emprego, renda e entretenimento.
O último evento que provou isso em Goiana, foi o Projeto Viva Arte, que no dia 20 de novembro ocupou o Pátio da Misericórdia com a 1ª Feira de Artesanato e Gastronomia do Viva Arte, além de contar com a apresentação de inúmeros artistas e músicos de Goiana e região, mostrando a diversidade musical e pulsante de Pernambuco. Foi um dia inteiro de celebração artística que movimentou a cidade e mostrou que existe um público ávido para consumir a cultura regional, popular e alternativa. E justiça seja feita: a Prefeitura de Goiana, que ajudou na estrutura desse evento, através da Secretaria Municipal de Turismo e Desenvolvimento Artístico, vem se mostrando mais sensível com a classe artística da cidade.
Por fim, fazendo um balanço geral, nós temos o Hip-Hop se fortalecendo cada vez mais com as Batalhas de Rap nas praças, ressignificando esses espaços com cultura, entretenimento e um viés educacional, afim de combater preconceitos; o grupo R.V.A com nova formação e novas composições, mantendo sua importância como grupo pioneiro de Rap em Goiana; a Call Communication, coletivo de Trap goianense que vem sempre apresentando novidades e mantendo contato com sua base crescente de fãs; a banda de Hardcore Melódico One Black Two White, com planos de gravar trabalhos inéditos em 2023; e a volta da Vênus em Fúria, que já vem trabalhando em novas composições e pretende voltar ao cenário do Rock Alternativo em 2023, fazendo shows e gravando seu primeiro trabalho oficial; o próprio Movimento MATA Goiana que conseguiu mais um espaço midiático, um podcast para poder divulgar e fortalecer os trabalhos culturais independentes de Goiana, através do canal de streaming Mais Goiana TV. Isso sem contar os novos artistas goianenses que vem surgindo e mostrando seus trabalhos mesmo que timidamente, mas cheios de diversidade, representatividade e resistência cultural – algo que foi indispensável nesses quase quatro anos desse governo inimigo da cultura que conseguiu desmontar e sucatear os direitos e vitórias dessa classe trabalhadora.
Cultura é entretenimento, mas também é trabalho, traz dignidade ao indivíduo e precisa ser respeitada e valorizada para que dê frutos. 2023 não será um mar de rosas, mas de espinhos: esse é o legado que qualquer governo fascista, reacionário e mentiroso deixa para o povo. Ao menos, poderemos curar nossas feridas e cultivar esperanças. Sem romantismo. Mas sem perder a ternura.
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