Como a banda deixou sua marca no cenário musical de Goiana nos anos 90
Por Guilherme Souza
Primeiramente, você sabe o que é datiloscopia? Com certeza você já fez esse processo. Datiloscopia é a técnica de identificação humana por meio das impressões digitais. E também, o nome de uma banda de Rock goianense que esteve ativa nos anos 90. A década de 90 trouxe uma renovação musical impactante na área do Rock: o Grunge marcava tendência, o Britpop tocava nas rádios e por aqui, o Manguebeat tinha o seu próprio manifesto cultural, misturando tradições com modernidades. Por outro lado, o uso da Internet ainda não estava consolidado aqui no Brasil e muito menos era uma realidade dentro dos lares. Se tratando de uma cidade do interior pernambucano, por motivos de falta de estrutura e investimentos, Goiana era considerada atrasada (há boatos de que ainda seja), principalmente para os jovens, sempre tão ansiosos por novidades. As únicas fontes de informação sobre música eram a estações de rádio, as revistas, algumas reportagens televisivas e os contatos que tinha condição de ir para as capitais Recife ou João Pessoa para comprar discos, fitas K7 e CDs para serem gravadas e repassadas entre a galera. Até que parece muito, mas as opções e o acesso eram limitados, tanto por fatores geográficos e econômicos, como também pela censura dos pais. Afinal, Rock sempre foi “música de doido”.
É nesse período de transições tecnológicas que surge a banda Datiloscopia, lá pelos idos de 1996. A formação era a de amigos de infância: Benné Brandão na guitarra solo, Zinho no contra baixo, Rivaldo Soares na bateria e o falecido Tubarão na guitarra base. Os vocais eram divididos entre Edu e Xando, porém, essa combinação não funcionou como o esperado e logo Wilfred Gadelha assumiu definitivamente os vocais. O nome veio de um livro de Medicina Legal do pai de Rivaldo. As influências da banda eram bem distintas porque cada membro tinha suas preferências individuais e as expressavam livremente, indo desde os clássicos do Rock como Black Sabbath e Iron Maiden até as bandas que faziam sucesso naquele tempo, nacionais e internacionais, como Raimundos e Nirvana, respectivamente. Dessa maneira, eles criaram um som que poderia ser chamado basicamente de Rock, sem pretensões de levantar a bandeira de algum estilo específico. Aquele lance de deixar rolar, sem rotular.
Embora o Rock seja o estilo musical mais conhecido no mundo, tendo gerado incontáveis bandas de sucesso mundial, numa típica cidade de interior o preconceito sempre é maior contra o diferente e dita as regras do que é aceitável para os costumes tradicionais. Nesse tempo, Goiana ainda carregava fortes estereótipos regionais, se destacando principalmente pela cultura da cana de açúcar – que é rica em história, mas, por fruto do desconhecimento, era vista como uma cidade que só tem mato e animais de carga andando pelas ruas de terra. Ela só viria a ganhar maior notoriedade a nível nacional depois da instalação do polo farmacoquímico da Hemobrás e do polo automobilístico da Fiat. Contudo, o cenário musical de Goiana passava por um período de letargia. Paulo dos Anjos e Rosildo Oliveira, dois dos músicos e compositores mais conhecidos da cidade tinham se mudado para Portugal, criando um vácuo a ser preenchido no cenário musical. O Rock estava em alta na mídia e há um bom tempo Goiana não tinha uma banda representante do estilo, até que a Datiloscopia surgiu, aquecendo o cenário que mais tarde, no início dos anos 2000, estaria efervescente com bandas como Holy Smoke, She, Deletérios, Zefadeão e outras. O cenário underground de Goiana e da Zona da Mata Norte de Pernambuco ficaria tão estável que os eventos aconteceriam constantemente, estimulando o intercâmbio de bandas na região.
Só que a realidade ainda era outra: é de se imaginar então que sujeitos mal encarados, todos vestidos de preto, com estampas afrontosas nas camisetas, tocando uma música estranha e barulhenta, não fossem vistos com bons olhos. Wilfred, vocalista da Datiloscopia, releva que a banda sofria preconceito, pelo fato de não serem compreendidos pelo tipo de música que faziam:
“Viam o que a gente tava fazendo e achavam que eram todo mundo doido. E era mesmo, mas um doido com consciência, a gente sabia o tipo de som que queria fazer. Queríamos tocar Rock N’ Roll. Havia sim um olhar estranho pra gente e até pra quem curtia a banda. Lembro que tinha pouco público, mas a molecada que depois fez a Holy Smoke, que eram fãs da gente, eram encarados com uma olhar enviesado. Mas a gente nunca levou isso a sério. Era tipo foda-se, vamos fazer o som da gente.”
Zinho, o baixista, complementa:
“Goiana sempre foi uma cidade conservadora, porém, isso nunca teve importância para a banda, deixamos de tocar em alguns lugares por causa do estilo, mas fazia parte da conjuntura da época.
Outra problemática que perdura até os dias de hoje em Goiana, embora em menor escala, é a falta de um local específico para se fazer eventos e colocar as bandas alternativas para fazer shows, fomentando assim a cultura musical da cidade. Em contrapartida, a maioria dos eventos undergrounds de Goiana, foram e são produzidos pelos próprios músicos, técnicos da área e agitadores culturais, que possuem a ânsia e a necessidade vital de mostrar seu som e seu trabalho, mesmo que contando quase sempre com uma estrutura precária por falta de incentivos, embora mostrando uma vontade de fazer acontecer que supera tais problemáticas, só pelo prazer de movimentar. Os coretos das Praças João Pessoa (13 de Maio) e Praça da Bandeira, o “Imperial Rock”, como foi apelidado, dentre outros lugares adaptados para receber os eventos de Rock na cidade, são os mais lembrados até hoje. Os coretos ainda recebem algum show, um acontecimento infelizmente cada vez mais raro, e o Casarão não comporta mais shows. Na verdade, até hoje não se sabe como aquele primeiro andar com o chão de madeira velha nunca cedeu, devido a galera pulando e fazendo roda Punk. Dava para sentir o tremor.
Sobre a escassez de shows de Rock na época, Wilfred comenta:
“Nunca chegamos a tocar fora com a formação da Datiloscopia, mas fizemos vários shows na cidade, a maioria ao ar livre. Na Rua do Rio, Luiz Gomes, em festas… foi muito divertido. E teve o show de lançamento da coletânea Japomim que foi na Associação Comercial. Acho que fizemos uns oito shows e depois de doze anos, num daqueles eventos em homenagem a Tubarão, voltamos a tocar, com quatro músicas…”
Nicholas Alexander de Albuquerque Moura, que era conhecido popularmente como Tubarão, tinha a guitarra como seu instrumento principal e era um músico que sempre atuava buscando sonoridades e aproximação com a música popular da Zona da Mata e Sertão. Participou de várias bandas goianenses, dentre a elas, GangaZumba e a própria Datiloscopia. Após o seu falecimento em 2008, a cena artística de Goiana não quis que sua mensagem artística ficasse fora do ar, dos ouvidos e conversas nas praças. Foi assim que surgiu a ideia de se fazer um evento em sua homenagem, o Tuba Livre, que contou com duas edições. Além da música, o festival agregava outras linguagens artísticas, como cinema e poesia. Os dois eventos contaram com a participação de diversos artistas amigos, que fizeram questão de dar ao menos um acorde em tributo a Tubarão. Foi uma ponte que uniu duas gerações de artistas na cidade e revitalizou o cenário musical popular e alternativo de Goiana.
Já a coletânea Japomim, citada na fala de Wilfred, é um projeto musical realizado em 1997 por Gildeon Anselmo, vereador de Goiana na época. Um importante trabalho que registrou o melhor da cena musical daquele tempo, mesclando vários estilos e gêneros, quando iniciativas multiculturais não eram tão comum. E como a Datiloscopia era a única banda de Rock ativa na cidade no período em questão, ela acabou sendo a primeira banda de Rock pesado (quem sabe até de Rock mesmo) a ter uma música gravada em CD de forma profissional. Uma oportunidade dessas em 1997 era coisa rara. A música escolhida foi “Hey Boy”, com uma temática que retratava o aumento dos casos de violência em Goiana naquele período, com muitas brigas relacionadas ao tráfico de drogas e vários assaltos, principalmente nas áreas mais periféricas. A música possuí uma visão pessimista do futuro sobre a cidade.
Confira abaixo a letra:
Hey Boy! Que horas são?
Peraí, volta meu irmão
Como é? Tu falasse o que?
Vem aqui, que é pra você ver!
Pra você ver! Pra você ver! Hey!
Por aqui a coisa tá feia
Qualquer dia, tudo incendeia
Sem ninguém pra nos proteger
É o fim, é pra se foder!
Pra se foder!
Pra se foder! Hey!
E ninguém diz nada
Quem manda é o medo
E pouco a pouco o bicho vai pegar
Quem disser algo
Perdeu o juízo
As coisas nunca vão melhorar!
VAI, VAI, VAI, VAI, VAI, VAI, VAAAAAAAAAAI!
Zinho conta sobre as lembranças dessa gravação:
“A experiência foi bastante significativa naquela época. Os músicos de Rock eram vistos como amadores, e nós descontruímos isso, pois gravamos nossa música em único take. Após mais de vinte anos, ainda curto escutar Hey Boy. A música fica como um registro histórico de uma das primeiras bandas de Rock a gravar uma faixa de CD em Goiana.”
Wilfred dá mais detalhes:
“Nós éramos a única banda de Rock que havia na cidade na época. Já tinha uma movimentação interessante em Carpina, em Timbaúba, em outras cidades do interior… Então pintou o convite muito pela proximidade que eu e Rivaldo tínhamos com Zé Torres, da Província (extinto jornal goianense), que meio que tava inserido na produção do disco junto com Gildeon Anselmo. Nós fomos a única banda de Rock. Escolhemos a música ‘Hey Boy’ que era bem emblemática e estávamos muito ensaiados. A gente ensaiava no estúdio de Tubarão, então tínhamos tudo à disposição, não pagávamos nem energia nem porra nenhuma… Tem um momento interessante durante a gravação: os caras colocaram a gente como sendo os primeiros a gravar, porque achavam que íamos errar, fazer merda, e acabamos gravando tudo num único take, com o pessoal rindo de tudo que a gente tava fazendo. Isso serviu de combustível para que ficássemos putos e então meter mais peso na nossa interpretação. Na parte do refrão que diz ‘é pra se foder’, eu fiz com toda a raiva que eu tinha por conta dessa questão do preconceito. É a faixa 13 do disco, um número que tem todo um contexto simbólico do mal, foi foda. Foi uma experiência muito massa também porque no lançamento do disco, resolvemos dar uma aliviada, tocando cinco músicas, sendo três nossa e dois covers, ‘Have You Ever Seen The Rain’ do Creedance Clearwater Revival e ‘Stand By Me’, que ficou famosa na voz de John Lennon, porque sabíamos que o público não era de Rock N’ Roll. Quando chegou a hora de tocar ‘Hey Boy’, ao invés de anunciar a música direta, eu comecei a cantar a música de uma banda de forró chamada Capital do Sol, aquela do ‘cha-lá-lá’, então começou a entrar gente pra dançar achando que íamos tocar forró, e a gente meteu a porrada pra cima e só três ou quatro malucos que estavam na frente do palco ficaram.”
Apesar da breve passagem, a Datiloscopia conseguiu imprimir sua identidade no cenário musical alternativo de Goiana, mais especificamente na área do Rock. É no mínimo curioso e surpreendente escutar “Hey Boy” na coletânea Japomim, porque ela fica entre a faixa 12, “Se Eu Voltar Pra Bahia”, de Letto Gomes, que traz um clima nostálgico e a faixa 14, “Natal”, de Gildeon Anselmo, que pelo nome já diz tudo. É um estranho no ninho que se encaixa de forma excêntrica e mostra a pluralidade musical goianense que só viria a crescer.
Você não sabe que está contribuindo para escrever a história até que a sua importância é lembrada nas rodas de conversa.
O ‘Datiloscopia’ é a primeira banda de rock, de Goiana, a gravar, mesmo que apenas uma faixa, em cd. ‘Já Os Verdugos’ é a primeira banda de rock and roll de Goiana, que no final dos anos 60 e início do 70 embalava os sonhos de paz e amor da moçada goianense.
Comentário por Márcio Gadêlha em fevereiro 9, 2021 as 4:10 pm