Conexão Venezuela – Goiana: O RAP é a ponte

Os rappers RT MC (Goiana) e Materia Gris (Venezuela) fazem parceria para lançar música e videoclipe que já estão em fase de produção.

O venezuelano Materia Gris MC e o goianense RT MC – Imagem: RT MC

Por Guilherme Souza

Nos últimos tempos, o Rap em Goiana tem se fortalecido cada vez mais através de movimentos culturais organizados por uma juventude de consciência política, e vem se firmando como referência na Zona da Mata de Pernambuco. As praças Duque de Caxias, João Pessoa (13 de Maio) e a do Wi-Fi se tornaram lugares onde acontecem as manifestações do Movimento Hip Hop, movimento cultural de reconhecimento internacional que ultrapassa as fronteiras territoriais, atuando como ferramenta de expressão dos anseios e problemáticas das vivências de uma sociedade marginalizada, ou ainda, de indivíduos que preferem seguir na margem por descontentamento com padrões conservadores, coloniais e racistas.

Embora cada nacionalidade tenha seus contextos específicos que resultam na produção musical, estética e narrativas singulares, a linguagem do Rap não encontra barreiras para se comunicar: o sentimento de revolta e a urgência na vontade de se expressar é a mesma aqui como na Venezuela, a exemplo das similaridades nas construções políticas/socioculturais de ambos os países latinos. O Hip Hop, que tem o Rap como sua música e outras vertentes artísticas como a dança e o graffiti, vai além da rebeldia típica da juventude, pois serve como ferramenta de denúncia das mazelas sociais; gera um debate político de relevância que busca desenvolver o senso crítico, de classe e de pertencimento, bem como contribui para uma sociedade mais justa, igualitária e livre das opressões do preconceito.

Em Goiana, A Batalha da Duque, Batalha do Wi-Fi, Batalha do Carmo, Rima na 13, são exemplos de encontros culturais que acontecem na nossa cidade e ressignificam espaços, visando a desconstrução típica da ocupação em praças, com jovens agentes e agitadores culturais ocupando o ambiente afim de promover cultura alternativa desprendida dos moldes arcaicos. São manifestações de ação direta que buscam uma emancipação cultural por meio do entretenimento crítico, artístico e atuante, afim de se construir um pensamento progressista onde as minorias encontram espaço para se expressar e são respeitadas pelas suas diferenças. Foi exatamente na Batalha da Duque que ocorreu um determinado encontro: a conexão de diferentes vivências culturais que se convergem e criam uma unificação de resistência.

RT MC é um dos rappers mais influentes de Goiana – Imagem: MATA Goiana

RT MC, um dos rappers mais politicamente engajados da cidade – já tendo inclusive recebido voto de aplauso na Câmara de Vereadores devido a sua divulgação da cultura Hip Hop, sendo da sua autoria os projetos Hip Hop Educacional e Hip Hop Contra Fome – soube através de um amigo, o MC Duduzinho, de um rapper venezuelano que estava em Goiana, mandando umas rimas em um posto de gasolina. Foi dada a sugestão de leva-lo para uma dessas batalhas de rima, mas devido a pandemia, as batalhas estavam suspensas e os participantes estavam envolvidos com outras ocupações. Mesmo assim, ocorreram duas esse ano, seguindo os protocolos de saúde para evitar a proliferação do Coronavírus. Foi então que para a surpresa de RT, o rapper venezuelano apareceu na Batalha da Duque e perguntou se poderia cantar uma música dele, no que prontamente foi aceito, deixando a galera que estava presente admirada.

“Quando ele começou a cantar, eu disse, ‘bixo… eu tenho que lançar uma música com esse cara…’ trazer um diferencial”, afirma RT.

Materia Gris é o rapper em questão. Ele começou fazendo freestyle em 2010, nas praças da Venezuela. Já reside em Goiana acerca de dois anos, sendo que seu pai é daqui. Ele afirma que queria conhecer o Brasil e acabou ficando por causa da pandemia. Atualmente, trabalha e reside em Goiana. Materia Gris em português significa massa cinzenta, aquela região do nosso cérebro que tem papel fundamental para a memória, a atenção, a percepção, a consciência, o raciocínio e a linguagem. Ele prefere ser reconhecido unicamente pelo seu nome artístico.

Materia Gris fala brevemente de como aconteceu seu primeiro contato com o Movimento Hip Hop de Goiana e sua primeira impressão sobre aqui:

“Cheguei na praça no dia que tinha rima e fui falando com os brothers, logo fui aprendendo mais da língua, fazendo amizade e iniciei na Batalha da Duque, chegando uma vez na final… em Goiana os caras são muito unidos, só que não se tem muitos eventos onde cantar. Lá (na Venezuela) é muito movido porque o idioma espanhol é uma língua muito falada em países da América Latina, é mais internacional e tem muitas competências…”.

Rapper Materia Gris gravando sua participação na música com RT MC
Imagem: Materia Gris

Embora Materia Gris não possua total domínio da língua portuguesa, o portunhol entra em ação no dia a dia para facilitar as interações, e a consciência política que se indigna com as injustiças é o fio condutor que une mentes libertárias. Essa união resultou na música “Ego”, se tornando a primeira gravação de um rapper goianense com um rapper internacional. RT fala sobre o processo de composição do single que está para ser lançado:

“Eu vi que o estilo dele é igual ao meu, músicas que passam uma visão que fale da realidade. Então, eu escrevi a letra e repassei pra ele. Eu disse ‘olhe irmão, eu tenho essa letra e se você quiser, a gente faz um feat. (do inglês, abreviação da palavra featuring, termo usado para indicar uma parceria musical). A ideia de música é essa’. Aí ele leu minha letra e acredito que ele traduziu também e assim foi indo, ele escrevia e me mandava. Traduzi a parte dele e a gente começou a desenrolar. Na parte do refrão que diz ‘eu temo pela minha vida, coração pulsa igual ao beat nas batidas’ eu pedi pra ele colocar uma letra parecida pra fazer uma conexão boa.  No final, fizemos a junção e ficou massa.”

Materia Gris complementa:

“Quero fazer mais canções em espanhol e português. O que me inspira são as coisas que eu vejo, as coisas que vivo… Antes eu escrevia uma música mais comercial, agora só tô escrevendo rap ‘consciência’ porque quero dar uma mensagem para o mundo.”

As narrativas de ambos os rappers de diferentes nacionalidades atentam para a realidade em comum de países da América Latina. Tanto o Brasil como a Venezuela veem sofrendo com a guinada do neoliberalismo e suas repressões contra os direitos dos trabalhadores, gerando um mal-estar econômico nas camadas mais necessitadas da população. Vivemos numa era onde a política capitalista flerta descaradamente com o fascismo travestido de nacionalismo. As classes dominantes, advindas historicamente do imperialismo colonial, insistem na exploração do trabalho do povo pobre e para isso precisam manter sua agenda de privatização, demagogia e manutenção da desigualdade social através de políticos conservadores, corruptos e populistas. Em consequência dessa necropolítica, vivemos em um estado de crise humanitária, agravada pela suposta incompetência (ou plano genocida) do governo federal em relação aos meios de combate contra o Coronavírus. Desde o “kit gay”, “mamadeira de piroca”, “terra plana” até o negacionismo do estudo cientifico sério que visa salvar vidas através da vacina, as fake news seguem se proliferando tão rápido como o próprio vírus. O vírus do racismo, do preconceito, do machismo, do falso amor cristão que infecta todo autoproclamado “cidadão de bem” também causa insegurança, traumas e pavor nas minorias: negros, mulheres e LGBTQI+. E agride e mata, todo dia.

Qual seria a cura para essas mazelas da nossa sociedade alienada, embrutecida pelo estímulo do ódio às diferenças? E o que poderia revigorar a indignação da população contra as injustiças cada vez mais normalizadas pela grande mídia, parcial e conivente com um governo antidemocrático e saudosista da ditatura militar? A música que vai além do mero entretenimento, que te faz pensar além da bolha do comodismo, que toca nas feridas dos privilégios e te arrepia, te deixa com vontade de agir: o Rap.

Se o Rap é consumido até por quem não vive a dura realidade das minorias que é retratada nos versos, sabemos que essa música tem a força de atravessar barreiras construídas por preconceitos históricos e tocar no íntimo do ouvinte, fazê-lo repensar sobre a violência enraizada na sociedade e nas exclusões socioculturais que ainda ditam as relações. Essa conexão cultural da música “Ego”, comprova que para o Rap não existe delimitação de fronteiras, mas a possibilidade de estabelecer fluxos de conhecimentos e práticas significativas na reivindicação dos direitos básicos das populações carentes e marginalizadas.

RT explica sobre o principal aprendizado obtido nessa composição em parceria com Materia Gris:

“Realidade parecidas se tornam uma verdade universal, podemos dizer assim. Ele foi da Venezuela, já passou por muita coisa lá e eu sou daqui de Goiana, já passei por diversas coisas e em nenhum momento mentimos na letra. Eu falei minha verdade e ele falou a verdade dele, isso teve uma conexão imensa, isso mostra que por mais que a gente seja de lugares diferentes, o Rap sempre tem uma conexão em si. Quando demonstramos nossa realidade em forma de música, tudo faz sentido, eu acabo sentindo a realidade dele pela forma que ele rima e ele também sente a minha. Essa é a principal ponte que é construída, uma ponte baseada em verdades.”

A parceria mostra que é possível fomentar cultura mesmo em momento de pandemia
Imagem: RT MC

Apesar das adversidades que o cenário da música autoral e independente de Goiana sofre historicamente, tais como a falta de incentivo cultural e a desvalorização das gestões municipais, os músicos alternativos seguem produzindo e fortalecendo a autossuficiência artística. A resistência cultural se dá não apenas pela arte crítica em si, mas também por meio da organização da classe no que diz respeito a luta por melhores condições de trabalho e isso inclui, por exemplo, a busca por espaços e estruturas onde possam se apresentar constantemente; mecanismos que proporcionem uma devida qualidade na produção artística local; divulgação adequada pelos meios de comunicação; as demandas são diversas e precisam atender a grande variedade artística da cidade, que só vem crescendo e vai além da música. No entanto, se não há o devido interesse do governo municipal em apoiar dignamente a classe cultural/artística da cidade, como o trabalhador da área lida com essa situação, o que o motiva a continuar produzindo?

“Precisamos de um incentivo, não apenas financeiro, mas no sentido de nos apresentarem para toda a sociedade, porque fazemos isso de forma independente, mas, acredito que o governo tem uma capacidade imensa de adotar meios que encaixem a gente em shows, em projetos, em publicações, pois isso nos incentivaria a poder produzir mais, correr atrás… se tivéssemos apenas um reconhecimento que merecemos ter, diante de tudo que a gente já passou, diante de tudo que a gente faz sem dinheiro e alavancando o nome da cidade…

O que mais me motiva é manter o sonho vivo, não só meu, mas de muitas pessoas que querem seguir o ramo artístico. A minha pretensão é mostrar que, por mais que seja difícil, por mais que não tenhamos incentivo, se a gente quer, a gente consegue. O que mais me motiva também são as pessoas que estão do meu lado, os Brothers que colavam toda a semana nas batalhas, aquela presença massa do pessoal… sempre corremos com nossas pernas, pouquíssimas vezes tivemos alguns apoios e o que me deixa firme nessa luta é o compromisso que temos com o Rap, é pensar que o Rap muda vidas e que temos essa capacidade.”

A música “Ego” ainda está para ser lançada e um videoclipe da mesma está em fase de produção. Por enquanto, você pode conhecer mais da trajetória e do trabalho do RT MC através desses links:
https://matagoiana.com.br/rt-mc/

https://www.youtube.com/channel/UCC5ZBE5z9Zvjt2mgddYXMtQ

Acompanhe as batalhas de Rap que acontecem na cidade e o projeto educacional que tem o Movimento Hip-Hop como inspiração:

https://www.instagram.com/rimana13_official/

https://www.instagram.com/_batalhadaduque/

https://www.instagram.com/batalha_do_carmo/

https://www.instagram.com/batalhadowifi/

https://www.instagram.com/_hiphopcontrafome/

https://www.instagram.com/hiphopeducacional/

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