A importância da organização: “A Música Reside no KAOS”

Como o festival do Movimento KAOS ajudou a fomentar o cenário cultural musical independente de Goiana e da Mata Norte

1º Festival A Música Reside no KAOS em 2013 – Imagem: KAOS/Facebook

Por Guilherme Souza

O KAOS (Kamaradas Anarquistas Organizando Sociedade) surgiu em 2010, quando o Movimento Silêncio Interrompido de Goiana, que antes abordava diversas expressões artísticas em suas manifestações, resolveu se dedicar exclusivamente à literatura, deixando assim um espaço a ser preenchido pelas bandas e músicos alternativos da cidade. Já o Kaos com K é um conceito idealizado pelo compositor e escritor brasileiro Jorge Mautner, onde ele dá um significado positivo a palavra Kaos. Luziano Jardim (popularmente conhecido como “Mago”), que é um dos idealizadores do movimento e vocalista da banda Prisma Orbe, conta que inicialmente a ideia do festival foi inspirada em um programa da TV Cultura, o Musikaos, que unia música, poema, artes visuais, grafite e outras manifestações da arte urbana. O programa era apresentado por Gastão Moreira e tinha como convidado constante, o próprio Jorge Mautner. O Mago explica melhor tal conceito dentro do Movimento KAOS:

O Kaos faz a síntese do pensamento simbólico (a palavra) com o pensamento sensível (som e imagem), com poemas que trazem como subtexto a música, e lendo-a como ponto de saída para traçar os caminhos que levam a poesia, no caso, estes poemas. Kaos com K na concepção do movimento ou como festival, é juntar música e poesia, artes plásticas e visual, é agregar a cultura subversiva à Zona da Mata.

Luziano Jardim “Mago”, um dos responsáveis pelo movimento – Imagem: KAOS/Facebook

Devido ao desligamento do Silêncio Interrompido com a área musical, as bandas e músicos que estavam na ativa no cenário independente de Goiana precisavam de um espaço, uma estrutura organizada e de qualidade para que pudessem amadurecer musicalmente e mostrar as técnicas desenvolvidas ao vivo. Então, aconteceram alguns eventos do KAOS na já conhecida base do “faça você mesmo”: organização típica do underground que independe de forças exteriores para poder acontecer, tudo é realizado através do apoio mútuo dos envolvidos no coletivo, movimento e etc. Posteriormente, o Mago, juntamente com Tiago Santana (guitarrista da Prisma Orbe e também idealizador do movimento) perceberam que, para a sobrevivência do KAOS e a realização de seus eventos, bem como seu estímulo às produções e criações musicais autorais, seria necessário a compra de equipamentos, ao invés de alugar uma estrutura (muitas vezes precária) para assim consolidar a independência financeira do movimento. Além de que, os coretos da praça João Pessoa (13 de Maio) e da Praça da Bandeira começavam a parecer pequenos para maiores pretensões, embora tenham demasiada importância como locais afetivos do underground goianense.

Em 2013, três anos após o seu início, o movimento KAOS tem o seu primeiro grande festival realizado na Rua Luiz Gomes com o apoio do Funcultura: A Música Reside no Kaos, com a missão de estimular a cadeia produtiva da música independente da Zona da Mata Norte de Pernambuco, envolvendo não só os artistas, mas os técnicos, bem como oficinas de capacitação. O festival realizou apresentações musicais com 10 grupos da região, 04 workshops e 01 oficina de luteria de pífano. O mote principal para determinadas ações é a constatação de que na região não existe nenhuma ação que valorize especificamente o fazer cultural da cena alternativa, e que também não existem políticas públicas que contemplem os grupos culturais independentes, precisando assim fortalecer as várias expressões culturais de Pernambuco, pois é isso que torna o Estado tão singular e diversificado no cenário nacional.

Numa entrevista realizada na época do festival, Tiago Santana argumenta o seguinte:

“Existe a necessidade das bandas se juntarem, porque quando existe um evento que é sólido e as bandas têm onde apresentar o seu trabalho, elas se mobilizam, as pessoas passam a fazer música. Então, a ideia do projeto é fazer a produção de bandas e que vão para a rua mostrar o seu trabalho. O projeto vem também com a necessidade de deixar para as bandas uma qualidade melhor pra se apresentar com um som profissional, coisa que a gente nunca teve, pra se apresentar com um trabalho de iluminação legal, da gente poder ter um registro de áudio desse evento. (…) Vale salientar que o Kaos não é um evento só de bandas, só de música. Nós temos os workshops, que é uma coisa totalmente didática e voltada para o jovem que tá afim de aprender algum instrumento, então o Kaos é meio profissionalizante (…). O festival vai passar, mas as bandas precisam ter em mente que o projeto, o movimento Kaos vai continuar. É um projeto voltado para a integração das bandas da Zona da Mata Norte pernambucana e Recife, a região metropolitana.”

Tiago Santana, um dos organizadores do 1º Festival A Música Reside no KAOS em 2013 – Imagem: Blog do Anderson Pereira/Youtube

Já recentemente, o músico goianense Lêdo Ivo, que participou do festival com a banda Bebop e ministrou um workshop sobre o contrabaixo, fala da sua experiência no Kaos:

“É sempre bom que um evento dessa natureza e grandeza aconteça mais vezes em Goiana. Apesar das pessoas não darem tanto valor assim, pelo menos a música vai tá sempre ali, os operários da música sempre estão fazendo o possível para que ela não caia. Além do tocar, o festival propiciou um viés educativo musical. No workshop, eu falei sobre a importância do contrabaixo dentro de uma música, fiz exercícios com pessoas até que não são ligadas a música e foi bem legal, porque algumas pessoas não conheciam o som de um baixo, não sabiam diferenciar e não sabiam reconhecer o timbre de um contrabaixo dentro de uma música. Eu propus a questão de tocar o instrumento em vários gêneros musicais, tais como o Frevo, o Jazz, Bossa Nova, Samba… eu colocava uma ritmo e tocava o baixo, depois eu o retirava para que pudessem ouvir a diferença da música com e sem o baixo. Eu via essa necessidade de falar isso para as pessoas que não tem essa oportunidade de conhecer melhor esse instrumento. O festival ‘A música reside no Kaos’ seria importante que pudesse ser feito todos os anos, que os governantes pudessem dar maior atenção, porque a música é inerente ao ser humano. Tudo que está a nossa volta tem música relacionada. Tudo que gera som é música. As pessoas acham que música é apenas aquilo que já tá muito bem produzido, muito bem gravado… não. Música é todo tipo de ruído que você imaginar. Já diziam os compositores do século 20 que o ruído é muito mais importante do que o som, porque o ruído é o início de tudo.”

O baixista goianense Lêdo Ivo Jr. se apresentando com o Trio Bebop no festival
– Imagem: KAOS/Facebook

Essa percepção de Lêdo Ivo, embora individual, demonstra de certa forma a efervescência musical que Goiana e a Zona da Mata passava na época. E o festival conseguiu muito bem captar esse momento e ser um norte de contemporaneidade, já que teve na sua programação bandas tão díspares como a centenária Saboeira e a de Black Metal, Pagan Spirits. É uma percepção que compreende a singularidade do cenário alternativo interiorano livre de limitações e preconceitos em relação as vertentes musicais, devido as diversas influências distintas que coexistem em harmonia, formando um conceito de tendências que ultrapassam os estereótipos folclóricos do nosso panorama cultural.

Antes de um festival como o do KAOS, só existia outro de ideias parecidas e de repercussão em toda a Zona da Mata Norte: o Tipóia Festival, que naquele tempo já contava com quase 20 anos de resistência cultural popular, revelando e divulgando artistas independentes, mas com suas características intrínsecas à cidade de Tracunhaém. Contudo, Goiana necessitava de um evento propriamente seu, pois as bandas da cidade precisavam de organização e capacitação para montar seus próprios festivais de acordo com as suas demandas, ao mesmo tempo que trocava e absorvia conhecimento com outros fazedores de cultura da Zona da Mata, permitindo assim um intercâmbio de bandas, músicos e produtores. E o movimento KAOS, que já contava com um grupo experiente de agentes da cultura, transformou esses anseios no A Música Reside no Kaos, festival que marcou um momento na história do cenário musical alternativo goianense, que mesmo vindo do underground, disponibilizava uma qualidade técnica nunca antes usada em outro festival da cidade.

Elthon Taurino, ex vocalista da banda goianense de Hardcore One Black Two White, relata sua experiência de ter tocado no festival e no que isso acarretou para a imagem da sua banda:

“Antes desse show, já fazia quatro anos que estávamos na estrada e só ganhávamos ajuda de custo pra tocar fora, e daí recebemos um valor piso de apresentação de banda que era bastante pra gente na época, e um dos nossos desejos na época era fazer um registro, investir no marketing. Então, quando a gente recebeu esse pagamento, investimos totalmente na banda. Entramos em estúdio pra gravar um EP da maneira que queríamos e também investimos parte do dinheiro em merchandising. Depois que lançamos o CD, conseguimos uma visibilidade muito maior e tocamos até em outras capitais do Nordeste. Eu não vejo a dimensão que a banda teve sem a participação do Kaos, sem essa grana que entrou do pagamento. Além disso, eu não percebo uma visualização da banda de forma profissional vista pela público sem o palco do Kaos. A gente só tocava em Goiana nos coretos das praças, onde a qualidade sonora era muito ruim e no palco do festival teve a melhora estrutura possível, onde as pessoas realmente escutavam a gente, entendiam o que a gente tava falando. O pessoal da cidade começou a valorizar mais a banda.”

A banda One Black Two White se apresentando no festival em 2013 – Imagem: KAOS/Facebook

Sete anos se passaram desde que o festival A Música Reside no Kaos mostrou sua importância para Goiana e a Zona da Mata, fomentando o cenário musical/cultural alternativo da região não só nessas esferas, mas também nas áreas do turismo e da economia. Entretanto, sabemos que esse cenário sempre viveu entre altos e baixos, infelizmente, mais baixos do que altos. Nesse meio tempo, a tecnologia propiciou novas vivências e experiências, facilitando a vida dos músicos no que diz respeito a produção e divulgação do seu próprio trabalho. A pandemia veio, a quarentena se fez explicitamente necessária, e por isso, as lives se tornaram cada vez mais corriqueiras, forçando uma adaptação que ainda não foi totalmente assimilada. Há ainda muito do que ser conversado e resolvido entre entidades governamentais, instituições que prezam pela manutenção da cultura e a própria classe dos fazedores de cultura alternativa e independente, tão prejudicada no momento em que vivemos pelo Coronavírus, (e pelo vírus do conservadorismo imbecilizante), afim de organizar todo o panorama artístico para que esteja assegurada sua merecida estabilidade econômica. Sabemos bem que um festival, um evento, um show presencial, onde as pessoas se veem cara a cara e interagem diretamente é bem mais aproveitável em todos os sentidos do que uma experiência virtual, contudo, a adaptação é uma constante numa trilha que necessita bastante resistência para não se abater. É preciso transformar o caos em Kaos: tirar proveito das inconstâncias e organizar a anarquia. E é por isso que vem aí a segunda edição do festival A Música Reside no Kaos.

Siga as redes sociais do Festival A Música Reside no KAOS para saber mais:

https://www.facebook.com/amusicaresidenokaos

https://www.instagram.com/amrkaos/

Nenhum comentário