Primeiro álbum da banda de Rock/Metal/Fusion goianense mostra o que acontece quando se mistura o groove de peso com um tempero regional
Por Guilherme Souza
A Usinaria é cria de Goiana, Zona da Mata Norte de Pernambuco. Faz parte da última leva de bandas que surgiram na década de 2010, quando Goiana tinha um cenário de Rock bem diversificado. Ela foi uma das pouquíssimas bandas a sobreviver no tempo e está mais ativa do que nunca, mesmo durante a pandemia. Suas primeiras apresentações, lá pelo ano de 2014, eram em formato de ensaio aberto: melhor forma de poder colocar em prática os treinos da banda, tendo a liberdade de errar, testar a pegada, entrosamento e contar com a reação do público sem maiores julgamentos. Fez algo estranho que não pegou legal? Tudo bem, é um ensaio aberto. A experiência leva à maturação. Os músicos que compõem a banda possuem desde licenciatura em música pela UFPE até formação em violão clássico pelo Conservatório Pernambucano, além do elemento que é essencial para se fazer uma música cativante, que é o feeling, atrelado as inspirações musicais de cada membro. E o laboratório da Usinaria possui uma extensa pluralidade de elementos e referências culturais, que acabou por gerar o primeiro álbum da banda, “No Fio do Facão” (2021).
Imaginem que Glauber Rocha (que foi um cineasta brasileiro, até hoje reconhecido mundialmente por obras como “Deus e o Diabo da Terra do Sol” de 1964, e o principal articulador da vertente Cinema Novo, que pretendia romper com o estilo cinematográfico importado dos Estados Unidos) resolvesse escrever outro filme sobre o cangaço, dessa vez influenciado pela cultura cyberpunk, mas baseado na dura realidade do sertão para desenvolver uma estética de ficção cientifica. A trilha sonora poderia contar com Luiz Gonzaga, Dream Theater, Angra, Guinga e grupos de ciranda e coco e mais. “No Fio do Facão” é o resultado dessa fusão que aparentemente pode parecer inconcebível, mas ao escutar o álbum, é perceptível que essas influências formam uma amálgama diferenciada. E para chegar nesse resultado, foi necessário perceber a importância de se cantar sobre a nossa rica cultura nordestina, nosso folclore e nossas tradições históricas, subvertendo a visão estereotipada da música regional, mas ao mesmo tempo bebendo da sua fonte para enriquecer as estruturas musicais.
A concepção do álbum começou a ser pensada ainda em 2015 e tinha como uma das ideias iniciais as letras cantadas em inglês, ideia essa que logo entrou em choque com as temáticas líricas tipicamente nordestinas que a banda gostaria de abordar: o cangaço, a seca, o trabalho rural, as lendas, a natureza e o descaso social. Fellipe Barnabé, o guitarrista da banda, conta que nessa época os integrantes achavam que as músicas eram boas, mas ainda eram “mais do mesmo”. Foi então que lhe veio o estalo:
“Nós podemos conseguir essa diferença que queremos misturando com elementos regionais, afinal, nós escutamos essas músicas desde criança, nas ruas, nos eventos, nos bares e etc… Na verdade todos nós estamos embebidos desses elementos regionais, principalmente quem mora no interior.”
Izaías, o baixista e vocalista, ressalta:
“Tendo iniciado a graduação em música na UFPE e começado a trabalhar na área de cultura, estava me aventurando pelo universo da música de tradição, em contato direto com grupos de ciranda e coco, por exemplo. Tudo isso foi sendo combinado para chegar ao que a banda faz hoje. A influência da música pernambucana acabou se tornando esse ponto emocional e afetivo que faltava – começamos a nos voltar para a infância, onde estavam a maioria das nossas experiências com essas manifestações.”
A primeira vez que a Usinaria entrou em estúdio para iniciar as gravações do que viria a ser o álbum “No Fio do Facão” foi tão logo as ideias começaram a surgir, em 2015, no Batuki Studio de Alisson Santos, em Carpina. O que a banda não imaginava, é que o processo fosse se arrastar durante seis anos, devido à grande quantidade de conceitos que os integrantes queriam agregar, mas precisavam encontrar um formato coeso para o álbum. É sabido que a vida do músico independente, autoral, alternativo, não é nada fácil. Ainda mais quando o mesmo vive em uma cidade pequena do interior pernambucano. Não é querer alimentar um complexo de vira-latas, mas é sobre estar atento para a realidade das problemáticas e burocracias que envolvem a vida de quem decide seguir por esse caminho. O fato é que é impossível hoje – e ainda mais com a pandemia do Coronavírus – que o músico alternativo goianense consiga ter uma renda unicamente com o trabalho da sua música e quanto mais “nichado” for o estilo musical, mais complicado ainda. Barnabé e Izaías desvendam melhor tal situação, respectivamente:
“Eu diria que as maiores dificuldades não estão apenas em tirar dos nossos próprios bolsos os custos da produção de um álbum, mas também do público, visto que as músicas de ‘massa’ estão muito longe da nossa proposta. Somos uma banda alternativa, que de fato, oferece uma alternativa às músicas massificadas, cujo único intuito é produzir riquezas. Temos o compromisso de produzir e criar ‘imagens’ sonoras das nossas experiências, trazendo nossa arte como estandarte. Sendo assim, nos encontramos nos eventos culturais como o Kaos que tivemos uma imensa honra em participar. Eventos como esse sempre trazem públicos que estão muito além das músicas massificadas. São pessoas de pensamento aberto e de grande valor intuitivo na qual, faz gosto tocar e trabalhar com elas.”
“Ser independente, na maior parte do tempo, significa ser seu próprio investidor. Temos consciência de que o nosso som apela a um tipo muito específico de audiência, portanto, nunca nutrimos ilusões quanto à possibilidade da banda conseguir uma projeção mercadológica. Some-se a isso o fato de estarmos inseridos no contexto social, histórico e geográfico de Goiana, Mata Norte do estado de Pernambuco, e aí está: a certeza de muito suor e pouco reconhecimento. Entretanto, a força vem da vontade de fazer, do desejo de expressar-se, furando os bloqueios para ser ouvido.”
É importante ressaltar sobre a melhoria significativa de políticas públicas voltadas para a cultura, embora ainda não tenham atingido o nível ideal e estejam longe de abarcar as diversificadas pautas que fazem parte do nosso rico histórico cultural e das vivências das minorias. As ações de incentivo promovidas pelos governos (federal, estadual e municipal) têm um papel significativo na realização de eventos, oficinas, festivais e rodas de debate, como bem explica Izaías:
“Vamos evoluindo conforme a vida adulta permite. Pelo fato da banda não ser uma fonte de receita para os membros, precisamos obviamente buscar sustento em outros campos profissionais. Isso acaba por consumir o tempo e energia que poderiam ser dedicados ao projeto, reduzindo ainda mais as chances de colocar a banda em primeiro plano. Se não fosse pelo fomento do poder público, não teríamos um registro da banda até agora. São iniciativas desse tipo que nos motivam a investir nosso tempo na produção artística. Creio que o maior papel do Estado, em relação à cultura, é justamente esse: não permitir que uma coisa tão fútil como o dinheiro impeça o povo de fazer a arte que o identifica.”
Contudo, a organização autônoma do tecido cultural independente também é uma força inegável, principalmente em tempos onde a cultura não recebe o valor merecido. A tecnologia tem ajudado nessa força, no sentido de proporcionar ferramentas para que o músico crie sua própria música e faça seu trabalho sem precisar se render ao monopólio da indústria cultural, podendo dessa forma explorar um universo de possibilidades. E no universo encontrado em “No Fio do Facão”, podemos nos deslumbrar com a nossa cultura pernambucana sendo narrada e tocada, uma afirmação da nossa identidade tão necessária, que pode conversar com outras vertentes musicais do mundo, criando uma sonoridade que não se limita ao rótulo de regional. Se o som da Usinaria apresenta guitarras pesadas típicas do Heavy Metal, elas também podem ser acompanhadas de letras que abordem a dura vivência do sertão nordestino, com um viés que pode levantar discussões acerca de fatos históricos, além de ser tocada sob a influência de músicos da própria terra. Barnabé justifica esse conceito:
“A história da guitarra não é nada brasileira. Temos, claro, muitos que reescrevem e ressignificam a sonoridade da guitarra através de um sotaque verdadeiramente nordestino como é o caso de Heraldo do Monte, por exemplo. Porém, a história da guitarra é vasta, passamos por muitos gêneros que a originou; Rock, Blues, Jazz, Metal, Country, Fusion, Funk (USA), R & B… Deixando os aspectos ideológicos da temática da banda, o fato da banda misturar os elementos é pelo simples fato de que gostamos de muita coisa, estudamos muita coisa, ouvimos muita coisa e queremos nos expressar de múltiplas formas. A pluralidade das experiências nos levou a essa mistura. O conceito da Usinaria é principalmente a pluralidade das múltiplas formas da nossa experiência como músicos e claro, como pessoas. Portanto, não se espantem com os próximos trabalhos, pode soar bem diferente… Eu diria que como nascemos em uma cidade do interior, compartilhamos do verdadeiro bálsamo dos movimentos regionais; dos caboclinhos; das cirandas que dançávamos de mãos dadas enquanto garotos na escola; dos carnavais cheios de frevo de bloco; da molecada cheia de farinha e ovos estourados. Contudo, com o tempo estudamos coisas de fora como o Rock, por exemplo. Estudamos do Jazz a música clássica para voltar para nossa casa e fazer o que nosso sangue clama, mostrar nossas riquezas, nossos dramas, sofrimentos, alegrias, devaneios e tudo o que um povo de valor é capaz de produzir nessa terra que na verdade não tem nada de seca.”
Na formação original, Antônio Neto (Toinho) ainda era o baterista e idealizador da banda, tendo composto a letra da última música do “No Fio do Facão” – “A Comadre”, enquanto Izaías, além de baixista, era responsável pelos vocais, tarefa essa que exigia demais da performance ao vivo, levando em consideração o apuramento técnico da banda. Foi durante as primeiras gravações do álbum em 2015, que Isabelle Benevides assumiu o posto de vocalista, convite feito por Izaías. O convite, segundo ela, serviu para confrontar a própria timidez e ganhar desenvoltura no palco. Conhecer os músicos previamente e gostar do estilo da banda foi algo que ajudou nesse processo, como ela mesma relata:
“Como eu já conhecia os músicos, a banda e já gostava do estilo musical, facilitou bastante. Nunca cantei em uma banda de Rock, mas sempre foi uma vontade. O processo de gravação, pra mim, foi a prova de fogo… Pois, já cheguei com essa missão… Os meninos me enviaram as letras das músicas e uns áudios para que eu pudesse estudá-las. Em um certo dia, os meninos estavam indo ao estúdio e me chamaram, para eu me familiarizar, (já que eu nunca tinha gravado e não conhecia o processo). Fui bem relaxada, pois até então a ideia não era gravar. Até que cheguei no estúdio e os meninos pediram para que eu fosse para a cabine de gravação “testar” uma música… Bom, a essa altura, nem preciso dizer que já estava bem nervosa… processando e entendendo o que estava acontecendo… Mas, para mim, foi assim… não houve qualquer ensaio antes com a banda completa, meu ‘ensaio’ foi pra valer, já gravando o álbum. Mas, gostei do resultado!”
A Usinaria segue refinando o seu som cheio de groove com o típico tempero nordestino, pernambucano, goianense e “No Fio do Facão” é a prova disso. Unindo a potência histórica do Rock com referências de resistência musical da própria terra, que como bem disse Barnabé lá encima, não tem nada de seca. É música autoral, independente, alternativa – não necessariamente por escolha, mas por necessidade, vontade de se expressar, criar arte sem as amarras burocráticas de um sistema conservador. É discutir, conversar, manter um diálogo franco, para que seja possível oferecer uma alternativa ao que é oferecido de forma massificada. Isabelle esclarece como se dá esse processo:
“Creio que é orgânico, pois nossa infância e nosso dia a dia, foi, e em alguns locais como o interior ainda é, viver a cultura no dia a dia. Claro que antigamente era muito mais viva essa cultura, mas esse é um dos papéis e intenção da banda, tentar manter certas tradições vivas. Isso faz com que a Usinaria tenha a sua particularidade e não deixe esses ritmos históricos e essenciais aos nordestinos, pernambucanos e goianenses caírem no esquecimento.”
Izaías complementa:
“A afirmação da identidade é de fato uma questão de sobrevivência. Admito que a motivação é um tanto egoísta: com tantas bandas espalhadas pelo país, aquilo que mais te destaca geralmente é o que falta nos outros, mas sobra em você. Porém, isso vem com o lado positivo de difundir essas tradições musicais para um público diferente e diverso. Em paralelo, ajuda as pessoas que estão mais ligadas à cultura popular a se identificarem mais com o som pesado. Gostamos da ideia de promover essas reflexões.”
Goiana está sendo cada vez mais apreciada e celebrada culturalmente, se tornando referência pela Zona da Mata Norte, tendo sua realidade periférica cantada, mas, a população goianense ainda não valoriza nem o cortador de cana nem o músico independente. A vida é difícil em ambos os espectros que alimentam culturalmente um ao outro. O moer da cana inspira o músico. E a música acalenta o canavieiro.
O sol imponente igual da bandeira
Esquenta ligeiro o gorro e a cabeça
No canavial, o dia não passa
Cortando a cana, facão não descansa
É suor na testa, é pano na boca
É pelo que coça e calo que sangra
O fogo, a fumaça, a mão toda preta
Poeira na bota e cinza na cara
Meu coração é moenda
Meu sangue é caldo de cana
Vivo do fruto da terra, do corte da cana
Qual é o futuro que a usina me reserva
Se eu vivo no fio do facão?
Qual é o sonho que resiste à queimada
Quando se alastra pelo coração?
– Letra da música “Lamento do Lambai”, quarta faixa do álbum “No Fio do Facão”, primeiro lançamento da Usinaria, banda de Rock/Metal/Fusion da cidade de Goiana, Zona da Mata Norte de Pernambuco.
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