Reflexões existencialistas, desconstrução de padrões e música eletrônica tomam forma em “Corpóreo”, segundo trabalho de estúdio do cantor goianense.
Por Guilherme Souza
Lucas Torres é um artista experimentado. Entrou na cena musical alternativa de Goiana como percussionista da banda de ritmos afro-indígenas Macumbá, para logo depois assumir os vocais da banda de Rock psicodélico e experimental Flores Mortas, que serviu de laboratório para que ele pudesse exercitar sua escrita e performance. Continuando, assumiu a identidade de artista solo, sempre trabalhando suas influências de modo personalizado. Camaleônico. O David Bowie da Mata Norte de Pernambuco. Referências a parte, Lucas tem despontado como um dos artistas musicais independentes mais relevantes do momento na nossa região – com potencial para ir além – e muito disso se deve ao fato dele estar antenado com o seu tempo e sua realidade enquanto indivíduo que enxerga pelo prisma do senso crítico, afirmando suas posições ideológicas e contestando as problemáticas que as afligem. Posicionamentos que foram se moldando ao longo da vida e da carreira artística, a qual possuí mais de 15 anos, já tendo feito vários shows em eventos e festivais entre Paraíba e Pernambuco, lançado o disco autoral “Signoser”, vencedor na categoria “Melhor Álbum Pop” pelo 10º Prêmio da Música de Pernambuco (2019). Atualmente, participa da Mostra Reverbo (movimentação que une cantautores em Pernambuco) e faz parte do projeto goianense Tertúlia, quarteto de poesia e música. Essas são algumas referências do artista Lucas Torres. Mas de forma alguma servem para lhe impor um rótulo.
O recém lançado “Corpóreo”, EP de cinco faixas que é o seu segundo trabalho solo, começou a ser imaginado ainda em 2019. Mas, devido as atribulações e correrias do dia-a-dia, o projeto acabou ficando de lado. Só com a chegada da pandemia do Coronavírus e a necessidade de reinventar o cotidiano no isolamento foi que a ideia voltou à tona. Se inicialmente apresentava letras com uma narrativa baseada na sua vivência enquanto artista LGBTQIA+, elas foram modificadas para também apresentar reflexões causadas pela dificuldade do momento pandêmico no qual estamos vivendo. As letras são como poemas compostos por Lucas e a ordem das músicas contam uma narrativa conceitual, necessitando de uma maior atenção do ouvinte, onde o ser humano vai do (re)nascimento à transcendência além do corpo, numa viagem onde natureza e tecnologia, espiritualidade e ciência, temas tão antagônicos que colocam a humanidade em conflito, dialogam entre si, pois inegavelmente fazem parte de quem somos. Contudo, não é pelo fato de algo supostamente fazer parte da nossa humanidade que não possa ser questionável e até mesmo, desconstruído. A contestação do sistema vigente precisa fazer parte da nossa trajetória para nos tornarmos mais evoluídos.
Embalado pelas inúmeras possibilidades do experimentalismo da música eletrônica, o músico e compositor Lucas Torres conta que a concepção artística do álbum surgiu por um convite feito ao seu produtor e parceiro musical Wagner Melo, para que ele arranjasse as canções com beats e elementos eletrônicos:
“Ele (Wagner) é quem comanda os sintetizadores na minha banda e é extremamente criativo em relação a musicalidades e timbres. Como temos sentidos muito parecidos no que diz respeito em como encarar a vida, em como ler as coisas do mundo, ficou muito fácil passar para ele as referências sonoras que eu imaginava, como elementos de ficção científica, abordagens que lembrassem um ciborgue (homem/máquina), também o mundo orgânico quântico (DNA, átomos, etc). Ele embarcou comigo nessa viagem e me presenteou com sonoridades que foram além das minhas expectativas”, explica Lucas.
Já a direção musical, ficou totalmente a cargo da musicista Sam Silva, também parceira musical dele, como ele conta:
“Sam Silva realizou a direção musical e produziu o alicerce de duas faixas: ‘Simbiótico’ e ‘Reprogramado’. Ela me ajuda bastante e é uma parceira também de longas datas em quem confio demais. Por meio de seu olhar atento, pegou o projeto e lapidou de uma forma que desse sentido e coesão. Além de dirigir e auxiliar meus vocais, participando comigo da faixa ‘Hospedeiro’, com vocalizes que deram todo o tom a música.”
“Corpóreo”, apesar de suas várias camadas e texturas eletrônicas experimentais – por vezes ruidosas com uma beleza caótica – que remetem a uma estética futurista no som, mantém a essência do Pop na sua estrutura, marca já registrada dos trabalhos de Lucas. Se em “Signoser” as músicas eram mais redondas e executadas no formato de uma banda, com melodias palatáveis e letras de fácil interpretação, porém com uma qualidade inquestionável, em suma, de maior apelo radiofônico, neste EP vemos a consequência da desconstrução do Pop como é normalmente conhecido em detrimento de uma metamorfose artística. Claramente inspirado em trilhas sonoras de ficções cientificas, as referências da cultura Pop são expandidas para além da música, criando um universo sonoro imagético que ganha novos ares e significados a cada audição mais atenta. Quanto mais você se permite à imersão, mais forte é o impacto. O clima do EP nos faz imaginar o futuro através de vivências do presente, embora a sonoridade remeta aos anos 80, numa época em que os sintetizadores eram tendência absoluta, sinônimo de futuro, e que se imaginava que teríamos carros voadores, mas hoje temos a crença da… terra plana. Algumas vezes é preciso buscar no passado por elementos futurísticos.
Lucas explica sua relação com o Pop:
“A melodia Pop é algo inegável em tudo o que faço. É sim a raiz de minha expressão artística. Devido às minhas referências de mundo, de vivências LGBTQIA+ que me fizeram despertar e me aceitar através de conteúdos rotulados como “cultura Pop”, como quadrinhos, música, cinema, teatro, dança… As possibilidades malucas e inimagináveis do Pop sempre me atraem, principalmente quando desconfiguradas, misturadas, remodeladas. Minha mãe sempre disse que, quando criança, o que eu mais gostava de fazer com os bonecos que ganhava era desmontar e juntar peças de um com outros diferentes. Sempre fui assim, gosto do que se mistura, do que se transforma.”
Em relação as letras, mesmo que elas possam gerar interpretações subjetivas, deixam claro que Lucas está cada vez mais se desprendendo de conceitos preestabelecidos no que diz respeito a criação da sua própria música e da mensagem que ele quer passar. Abordando pautas mais conhecidas do Movimento LGBTQIA+, como a ageneridade, empoderamento e autoaceitação, ele canta essas temáticas afim de expandir os conhecimentos das causas e consequências enquanto ser político, onde só o fato de existir é por si só um ato de resistência contra a repetição de padrões impostos por um sistema de medo que acaba resultando na perpetuação de ignorância, violência e morte. Lucas criou um ser em “Corpóreo” usando de uma conotação cibernética, onde dispositivos eletrônicos se entrelaçam não apenas com o corpo, mas também com a alma para trocar informações, e tal personagem híbrido (orgânico/mecânico) reflete sobre as amarguras do tempo em que vivemos. Ele afirma que para a elaboração desse EP, foi necessário não ter medo:
“Consegui me despir de muitas coisas que, na verdade, eram barreiras criadas pelo medo em ‘ter que agradar’ aos outros. Corpóreo foi um experimento não só musical para mim; Mas de vida. Passei por um aprendizado e um amadurecimento extremamente importantes durante todo o processo, creio que é por isso que tenho um absoluto respeito e carinho por esse EP. Ele realmente me emociona.”
Vivemos numa realidade onde a indústria cultural da música programa tendências que esvaziam a arte e fabricam músicas descartáveis. A música eletrônica e todas as suas ferramentas são usadas por artistas que vão desde o Rock até o Rap, e mesmo que isso não seja um fenômeno atual, hoje em dia a música eletrônica parece servir de muleta quando as ideias ficam escassas. Entretanto, os recursos e facilidades que a tecnologia dispõe torna a criação da música mais acessível e choca o conservadorismo de grandes estúdios e produtores. Se aventurar neste universo eletrônico de infinitas possibilidades musicais é uma via de mão dupla: ou o artista cai na armadilha do sucesso sem essência ou consegue transcender levando junto quem ouve, nem que seja por um breve momento.Agora, se a música eletrônica indica para o futuro, Lucas não quer saber:
“Eu não sei, sinceramente. Não me faço essa pergunta pois hoje me entendo como um ser extremamente inconstante, mutável e sensível. Meu único foco é fazer o que me move: arte. O que me instiga nas possibilidades eletrônicas são as milhares de possibilidades em criar, de forma mais versátil e acessível. Mas eu me interesso demais pelo orgânico também. Não acho que seja apenas uma tendência passageira geral porque a música eletrônica trouxe vários outros aspectos inclusive sobre repensar a indústria musical. Hoje, com recursos tecnológicos e aparatos mínimos, você pode fazer um home estúdio e começar a criar, a gravar, a espalhar seu trabalho. E isso é maravilhoso! Temos que quebrar com esses preconceitos elitistas de achar que ‘música é isso’ ou ‘música é aquilo’. Música é humano e humanos são infinitamente múltiplos.”
Estamos tentando sobreviver a mais de um ano na pandemia, oscilando entre momentos de isolamento, melancolia, frustração, raiva, desespero e alguns momentos de felicidade, esses, cada vez mais escassos. O mais alto escalão político que está no poder também não ajuda, pelo contrário, parece trabalhar junto ao Coronavírus para causar mais mortes, empurrando a população mais vulnerável para o precipício. Cabe ao indivíduo canalizar esse fluxo de emoções tão díspares, e esse processo influencia diretamente na criação musical do artista e a direção que se pretende seguir. Sobre o processo de criação de “Corpóreo” durante a pandemia, Lucas revela:
“Creio que o medo, a angústia a insegurança no amanhã me levou a um exercício que não costumo fazer muito: o de acreditar no agora, viver o agora, tentar aproveitar o máximo, porque, realmente, não temos controle sobre nada em nossas vidas. Eu vivia preocupado demais com o amanhã. Ainda vivo, mas o exercício com o EP me trouxe pra esse presente. A outra influência foi de acreditar que, com poucos recursos, contando com os amigos, eu seria capaz de produzir algo que me emocionasse. Aí foi o mais difícil. Mas, quando a gente se dá conta do que tantas pessoas estão passando e do privilégio que temos em poder estarmos bem, sadios e vivos… Isso me deu uma segurança que nunca senti antes. Por isso que repito: Esse EP é uma das coisas mais lindas que já fiz e me orgulho demais disso.”
O fato é que não estamos vivendo em tempos de paz e amor. O negacionismo da ciência é um sintoma do vírus da ignorância e a ignorância é tratada como uma benção pelo fundamentalismo religioso. Inversão de valores. Ataque ao diferente. Opressão contra quem luta apenas pelo direito de ser quem se é, gente que quer se libertar do jugo da carne e do espírito. Gente que ameaça a estrutura do sistema prisional da Matrix sempre corre perigo. “Corpóreo” nos é apresentado então como uma oportunidade de se emocionar, de viajar sem sair do lugar, uma chave que pode desbloquear a compaixão em nossos corações tão maltratados. Um totem que foi enviado do futuro contendo um conjunto de orações cibernéticas, de uma era onde a fé transcendeu as tradições atrasadas, para cultivar apenas as que contam a nossa história de empatia e evolução para e além do corpo físico. Até que se prove o contrário, os avanços científicos não anulam a espiritualidade. Tradição não é fé.
Existem centenas de milhares de músicas que falam sobre o amor, sentimento que acompanha nossa humanidade desde os primórdios. O amor já foi ridicularizado, enganado, repudiado e assassinado. Mas ele permanece no fundo do nosso íntimo, escondido, com medo. Então, permita que “Corpóreo” entre no seu sistema e remova as impurezas. Deixe que faça um update no seu amor que está guardado, que não é pouco, só não está sendo cultivado. Permita que o seu amor seja revolucionário.
>> Ouça o EP “Corpóreo”, de Lucas Torres
Disponível em todas as plataformas digitais
https://tratore.ffm.to/corporeo
>> Assista aos videoclipes de Lucas Torres:
Quando (feat. Almério) – https://youtu.be/_yWb9WnLYdo
Esquecimento – https://youtu.be/9g4ywaSZwDk
Ponto de Tangência – https://youtu.be/rg8e-h8MFAA
>> Acompanhe Lucas Torres no Instagram: https://www.instagram.com/lucastorresoficial/
“Corpóreo” – FICHA TÉCNICA:
Composições, direção geral e de arte – Lucas Torres
Direção Musical – Sam Silva
Produção musical e arranjos – Wagner Melo
Masterização – Vinícius Aquino
Vozes captadas pelo home studio Ilha Criativa, em Goiana/PE.
Distribuição digital: Tratore
Fotografia: Ilton Ferreira
Social Media: Matheus Oliveira
Assessoria de Comunicação: 1000Tons Comunicação
Incentivo: Lei Aldir Blanc, Fundarpe, Secretaria Estadual de Cultura, Governo de Pernambuco e Governo Federal.
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